Capítulo 22: Frederico - O livro azul de Sátiron

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Frederico emergiu de debaixo da locomotiva com um pedaço de metal na mão.

— Olhe o estado deste pistão.

— O Eliana ficou quatrocentos anos exposto à natureza — disse a Velha. — Você não esperava que estivesse em bom estado, esperava?

Um ano havia se passado desde que Frederico viu o Eliana pela primeira vez. A Velha, como prometido, havia conseguido diversos livros sobre engenharia de locomotivas. Quem os trazia era um cavaleiro negro e barbudo chamado Menior. Assim como a Velha, Menior tinha mais cores na sombra de seus cílios do que Beloú em um dia de sol. E o Eliana tinha mais cor no cheiro de sua ferrugem do que todos eles juntos. Aquele trem havia voado até Tinsa e voltado. O Eliana foi o primeiro trem a cruzar um oceano. A ferrugem de suas engrenages era salgada.

— Onde você consegue todos esses livros? — perguntou Frederico a Menior.

Menior pegou o pistão das mãos de Frederico e levou-o até o cavalo preto. Vasculhou o interior de uma sacola na lateral da sela e encontrou uma peça semelhante ao pistão do Eliana.

— Não é exatamente a mesma peça — disse o cavaleiro barbudo — mas talvez seja possível adaptar ao motor do nosso trem.

Nosso trem. No começo, nem Menior nem a Velha enxergavam o Eliana como mais do que um acampamento, um abrigo, um lugar seguro na floresta, onde a chuva e o frio podiam ser evitados. Frederico comparou os dois pistões.

— Se eu fizer uma extensão deste pedaço — ele apontou — deve encaixar.

Ele pensou em perguntar onde Menior conseguia todas aquelas coisas, além dos livros, mas teve medo da resposta. Frederico não estava acostumado àquelas cores todas penduradas em Menior e na Velha. Elas tinham poder.

Frederico passou o dedo pelas páginas do último livro que Menior havia trazido. Ainda lia um pouco devagar, mas a Velha não deixava ele explorar as mecânicas do Eliana enquanto não houvesse lido suas lições com ela. Mais do que ler as lições, ela não deixava ele fazer nada enquanto Frederico não tivesse discutido, entendido, pensado.

— Um dos maiores problemas da humanidade — ela dizia — é que as pessoas não querem pensar, elas querem acreditar.

Quando voltava para Beloú, Frederico levava consigo três livros: dois que a Velha escolhia, um sobre trens.

Ele lia escondido na parte trancada da Mansão Real de Beloú, onde ainda havia lâmpadas, embora inúteis, e as antigas lareiras que ele não podia acender sem feitiçaria. Estar em uma daquelas salas empoeiradas era como estar em um lugar antigo. De certa forma, aquilo era antigo: tinha pelo menos quatrocentos anos. Mas parecia mais antigo ainda. Parecia mágico, como se o Império ainda existisse e uma das imperatrizes ainda governasse este pedaço de mundo. O fogo extinto na lareira inútil aquecia Frederico contra o desprezo gelado que vinha do outro lado da muralha.

— Menior — Frederico chamou-o para perto da locomotiva. — Estas peças eu não vou conseguir restaurar. Você acha que consegue substitutos?

Menior estudou as partes de metal, então desenhou-as em um caderno, anotando medidas, o número de dentes de cada pedaço, parafusos. Durante o ano que se passou, Frederico aprendeu a dormir sem pesadelos. Não tinha sonhos, mas o pesadelo ficava em Beloú, junto com a sombra cinza que espreitava Frederico de dentro da Boca da Guerra. Durante o ano que se passou, a barba de Menior continuou a mesma, mas os cabelos crespos, cortados rentes ao crânio, começaram a se render às marés da testa.

— Posso conseguir — disse o cavaleiro negro.

— Você deve conhecer um ferreiro muito bom — disse Frederico.

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