Capítulo 54: Vivianne

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Pouco antes de o sol se levantar, Vivianne pegou a perna esquerda por baixo do joelho e, muito carinhosamente, puxou-a para fora do colchão. Foi segurando o peso da perna até sentir veios de madeira na sola do pé. A perna direita foi mais difícil de movimentar, não só por estar imobilizada, como por causa da dor. Uma vez que as duas pernas estavam fora da cama, Vivianne secou o suor da testa, apoiou as mãos na mesinha e tomou impulso, jogando todo o peso em cima da perna esquerda.

Contorceu o rosto por antecipação à dor, mas não foi tão ruim assim. Vivianne examinou desconfiada a perna imobilizada. Coalim disse que ela estava quebrada em três lugares. Deveria estar doendo muito mais do que isso. Puxou a camisola até a cintura e começou a desenrolar os curativos.

A perna não estava quebrada. Manchas escuras bordeadas de roxo e azul indicavam o local das lesões, mas não havia inchaço. Vivianne sentiu a perna com os dedos, experimentou apoiar-se nela. Doía, e bastante, mas funcionava. Isso podia significar duas coisas: que Vivianne estivera de cama por muito mais do que uma semana, mas isso ela sentiria no corpo, ou que a magia do Vulto ainda a amparava e por isso a perna se curou tão depressa.

Sobre a cadeira havia um vestido com a saia comprida. Vivianne não gostava de saias compridas. Da última vez que usou um, aos treze anos de idade, subiu correndo uma escada, com mapas novos nos braços, tropeçou na saia e rolou pelos degraus. Ela chorou tanto, que o Vulto e Marcus vieram correndo socorrê-la, mas encontraram-na em pé, com uns roxos pelo corpo, porém sem perigo de fraturas. Então, por que chorava?

— Meus mapas — ela gritou — eu rasguei meus mapas novos.

Depois disso, Vivianne nunca mais usou saias longas, só calças e saias curtas. Ela procurou pelo quarto da Pluma, mas só encontrou aquele vestido, então vestiu-o, alongou o corpo e buscou o corredor. Precisava encontrar Rimbaud e conseguir passagem na Caravana. No corredor, Vivianne cambaleou de fome. Uma mulher loira e gordinha que se apresentou como Joanna, dona da Pluma, sempre lhe trazia uma gosma quente e doce pela manhã, mas Joanna não havia acordado ainda. Primeiro comida, pensou Vivianne, depois a caravana.

Vivianne passou por um ronco, um gemido e um suspiro até chegar a uma escada que descia. As pernas tremiam, as costas doíam, a cabeça sentia cada batida do coração. Francamente, quem foi que inventou as escadas? Ninguém pensa nos feridos quando constrói qualquer coisa. Exceto em Sátiron, Vivianne lembrou. A arquitetura do Segundo Império foi toda moldada para ser acessível a idosos, crianças, gente que não tinha corpo para encarar degraus.

Deve ter sido bom viver no Segundo Império. Ai, que saudades dos meus mapas.

Aquela escada devia ser uma criatura das trevas, causadora de dor, obstáculo à gente de bem. Cada degrau era um inferno e, francamente, depois de todo esse esforço, era Lune que devia estar esperando aqui em baixo, não este chão gelado de ardósia.

Por que foi que eu não coloquei um sapato?

Porque não tinha. Ninguém esperava que Vivianne saísse andando pela Pluma, muito menos pela rua, por isso não havia nenhum sapato no quarto. Engraçado colocarem um vestino mas nenhum sapato. Era para ela se levantar, se vestir e voltar para a cama?

A aurora tateou chão, balcão e bancos; as sombras se espreguiçaram embaçadas, difusas. Silêncio. A ardósia do saguão era mais fria que a escada de madeira. Onde ficava a cozinha? Vivianne tinha fome de pão, manteiga, queijo e mel, talvez um pedaço grande de carne, uma perna ou duas de frango, ervilhas, morangos.

Deteve-se quando chegou ao balcão, onde havia um homem com a cabeça deitada sobre os braços dobrados. Uma das mãos ainda segurava um caneco vazio. Deve ter morrido de tanto beber, porque Vivianne não conseguia imaginar alguém capaz de dormir naquela posição. Ela deu a volta pelas costas dele e chegou do outro lado do balcão.

A Boca da GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora