Capítulo 95

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E Líran a tudo assistiu.

Parte de Tuen havia vaporizado, em seu lugar restava um buraco negro. Ruas se esgueiravam para fora do buraco e as casas se inclinavam para longe, dando a impressão de que, se pudessem, fugiriam dali. O cheiro de pedra queimada, diferente do de carne queimada, não revirava o estômago, mas a mente.

Vivianne em pé ao lado de Gregoire na beira da treva, incapaz de agir, incapaz de pensar. Pierre estava em coma em Chambert com o mago Fregósbor. Tuen não podia mais ser defendida, por isso Germon e Bojet auxiliavam Neville e Luc a transferir os sobreviventes de Tuen a Chambert, onde Menior, Coalim, Thaila e o Eslariano ajudavam Marie a cuidar dos feridos. Corpos cheios de gritos atapetaram os saguões de Chambert.

Se Vivianne olhasse para a frente, pretume: a Pluma apagada do mundo. Joanna morreu limpando o balcão. Se Vivianne olhasse para os lados, corpos distorcidos, meio queimados, alguns derretidos. Tantos corpos.

— Vamos enterrá-los — ela disse.

Gregoire protestou o tempo que gastariam enterrando todos aqueles corpos, mas Neville chamou e Chambert inteira se voluntariou, mais os sobreviventes de Tuen ainda capazes de andar.

— Onde? — perguntou Neville.

Vivianne apontou para o centro do buraco negro.

— Eles trarão vida de volta ao solo queimado. Sei que sim.

Tuen e Chambert unidos desafiaram o cheiro preto, pás em punho. Bojet, Germon, Coalim, Vivianne, Neville, Luc, Gregoire, o mensageiro Menior. E Líran assistindo.

Pretume e morte impregnaram as narinas de Vivianne, entraram na corrente sanguínea, pesaram-lhe os braços. Ela não se importou. Quis continuar cavando, provar à treva que podia com ela. Quando os corpos começaram a descer, ela pensou que ia chorar, mas seus olhos se afundaram em secura distante. Estaria se tornando indiferente à morte?

O último corpo foi descido à vala por Neville e Thaila, com ajuda do Eslariano. Pedaços de gente em buraco de carvão. Será que deviam ter cavado uma cova para cada corpo? Eram tantos.

Luc foi o primeiro a recuperar a pá e jogar terra morta sobre os mortos. Ao seu lado, Coalim disse um discreto:

— Sinto muito. Por Tuen, por seu irmão.

— Por Tuen, eu também sinto — respondeu o caolho. — Por meu irmão só tenho orgulho. Maurice morreu herói.

A palavra ficou pendurada sobre as cabeças de todos ali. Herói. Cada pá de terra jogada na vala parecia desenhar o arco sônico do ói de herói. E todos eles pensaram em uníssono: Pierre. O Eslariano passou o braço, já curado, pelo ombro de Thaila. Sem Pierre, que teria sido deles?

Gregoire digladiava com seus próprios sentimentos. Por que pensara em Pierre quando o caolho mencionara heróis? Pierre era seu irmão, nada mais. Todas as coisas desagradáveis que aconteceram na vida de Gregoire foram por causa de Pierre.

Mas as boas também. As maravilhosas também.

Menior sinistro. Havia perdido Frederico de novo.

Bojet e Germon pensavam em cartas. Não percebem? A Franária está aqui, jogando cartas na Pluma.

Neville planejava. Enquanto Pierre estivesse inconsciente, o funcionamento de Chambert dependia de gente como ele. Procurava não pensar nas palavras do mago Fregósbor:

— Magia e trevas se chocaram contra ele, como martelo e bigorna. Talvez ele nunca se recupere.

Vivianne foi a última a dar as costas para as covas. Pensava em como a barriga de Joana balançava toda vez que ela gargalhava, na faísca dos olhos de Maurice toda vez que falava com Pierre. Vivianne desgrudou os olhos dos mortos e procurou os vivos. Ombros murchos, cabeças pendentes marchando do buraco negro para as ruínas de Tuen.

— Herói — ela disse. Palavra sonora, melodiosa; palavra mais forte que rei. Todos se voltaram para ver que voz a modulara.

Luc, Bojet, Germon, cicatrizados, fortes, guerreiros; Neville, alto, negro, nobre; Gregoire, curioso, incisivo, duvidoso; Thaila e o Eslariano, ansiosos, esperançosos; Menior, indecifrável; Líran, púrpura.

— Pierre está em boas mãos com o mago de Chambert — disse Vivianne. — Enquanto ele se recupera, cabe a nós impedir que esta história termine em trevas. E eu tenho certeza de que havia um plano. 

A Boca da GuerraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora