Olivier de Tuen, conselheiro do rei, não prestou atenção aos quinze novos recrutas em frente ao rei. Olivier era um homem comprido, de rosto sulcado e nariz afinado; cantos dos lábios puxados para baixo. Cheios de enfado, pensou Neville. O conselheiro estava sempre presente nas cerimônias de lealdade, fidelidade, dade-dade, juramentos feitos por jumentos (palavras de Olivier em uma visita feita ao pai de Neville muito tempo atrás). Enquanto Neville, Robert e os outros treze rapazes se ajoelhavam perante Henrique, Olivier tentava arrancar com a ponta da bota um pedregulho preso a uma falha do chão.
Os jovens fizeram seus votos a Henrique de Baynard, que estava em pé e de braços cruzados no topo da escada atrás de Olivier. Até o pescoço de Henrique era musculoso. Juba loira, nariz reto retangular, antebraços grossos com veias saltadas. Um sol em corpo de homem, foi como Maëlle descreveu Henrique a Neville criança.
Os dois melhores amigos de seu pai estavam na frente de Neville: um no topo da escada, outro na base cutucando um pedregulho. O rei Henrique visitou o capitão uma vez depois da Batalha da Ponte. A casa de Neville pareceu pequena demais para aquela montanha de rei.
Neville esperava que o rei falasse ao ex-capitão, que arrancasse ele daquele interrogativo torpor, daquele cheiro parado de mofo e traças, mas o rei não conseguiu plantar os olhos no homem sem pernas. A montanha encolheu-se sobre uma cadeira ao lado da janela pela qual escapava o inacabável Por quê...?
O rei ficou pouco tempo dentro da casa de Neville. A cada minuto, se encolhia um pouco mais, até que finalmente encontrou o olhar intenso e negro de Maëlle. Henrique se levantou num ímpeto e saiu para a rua como se temesse que a casa, o silêncio e o por quê o engolissem vivo. Ele nunca mais voltou.
— O que traz na mão? — Do topo da escada, o rei apontou para Neville.
Olivier cutucou o pedregulho ainda um instante antes de se mover e estender a mão para o mulato. Neville entregou a Olivier o medalhão do pai, a águia prateada de capitão. Uma das sobrancelhas de Olivier se livrou do tédio e se espantou. Ele finalmente olhou para Neville. Então, todo o rosto foi se modificando, ganhando intensidade, varrendo o tédio e colocando no lugar uma eletricidade que Neville não soube ler.
— Neville — disse Olivier.
— O que é? — perguntou Henrique. — Mostre-me.
Olivier entregou o medalhão ao rei.
— Vou guardá-lo comigo por hora — disse Henrique a Neville — mas espero devolvê-lo em breve.
— Com sua permissão, senhor — Neville se levantou. — O medalhão pertence ao meu pai. Ele perdeu as pernas, não a honra, servindo Baynard. — E estendeu a mão para o rei.
Os outros recrutas murmuraram entre si. Henrique levantou as duas sobrancelhas douradas, então soltou uma gargalhada sonora e desceu os degraus até Neville.
— Guarde-o. Um dia, se tudo correr bem, eu te darei permissão para usá-lo no pescoço. — Ele estendeu os braços como se segurasse uma bandeja. — Soldados de Baynard! Vocês agora são meus irmãos. Seu juramento torna meu o sangue que corre em suas veias.
Terminada a cerimônia, Olivier pegou o cotovelo de Neville.
— Você veio tomar o lugar do pai — ele disse. — Ajoelhou-se no lugar de um homem que não pode mais se ajoelhar.
Neville nada disse. Olivier não parecia estar fazendo uma pergunta.
— Ouvi dizer que coça — continuou Olivier de Tuen. — Que uma perna perdida ainda coça. É verdade?
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A Boca da Guerra
FantasyUma guerra de rotina. O rei da Franária morreu sem deixar herdeiros. Aconteceu o de sempre: três primos que se achavam no direito começaram a brigar pela coroa. Depois de quatrocentos anos (e, sim, todos eles tiveram descendentes), a guerra continua...