Capítulo 59: Coalim

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Coalim não gostava de ser o centro das atenções. Estava exposto como uma obra de arte para a admiração e horror de todos os clientes da Pluma, que balançavam para lá e para cá na ponta dos pés para ver as queimaduras de Coalim.

Foi ideia de Pierre. Ele disse:

— Imagino que vocês possam se esconder para o resto da vida — para Coalim e os dois soldados queimados — mas se quiserem voltar a interagir com pessoas, ajudem Joanna. A Pluma está cheia e Joanna anda assoberbada.

Coalim achava que Joanna ficava assoberbada até dormindo. A estalajadeira marchava Pluma acima e Pluma abaixo com um paninho de limpeza, polindo mesas que estavam gastas, talvez não pelo tempo, mas pela limpeza incessante de Joanna. A mulher, se pudesse, passaria pano e sabão no ar que respirava. Mesmo assim Coalim obedeceu. Assim faziam os ajoelhados: baixavam os olhos, seguiam ordens. Mas Pierre não tinha dado uma ordem.

Coalim era eslariano e na Eslarina não se dizia nada diretamente, nem mesmo uma ordem, por isso ele entendeu a sugestão de Pierre como ordem. Ele desceu e Pierre tinha razão: na Pluma tinha uma multidão que vazou para a rua. No instante em que Coalim apareceu, uma onda de silêncio começou dos pés dele até o lado de fora. Ele se espantou de estar sozinho e percebeu que havia se enganado. Pierre não tinha dado uma ordem. Bojet e Gérmon não tinham descido.

Líran se aproximou e Coalim se retesou. Ela parou. Provavelmente ela queria ajudar, quebrar o silêncio, interagir com ele como humano e não como horror, mas a garganta de Coalim ainda ardia da história vomitada que ele não tinha contado para mais ninguém. As histórias e os acontecimentos corriam em direção a Líran como rios para o oceano. Coalim, acostumado a ser represa, ainda se ressentia de ter se rasgado em rio.

Então o silêncio na Pluma mudou de tom. O que era só quietude de vozes virou paralisia de corpos. Bojet surgiu à direita de Coalim, Gérmon à esquerda. Nem mesmo Coalim estava acostumado àquelas peles derretidas, enrugadas, avermelhadas nos sulcos, esbranquiçadas nas dobras. Ele aprendeu a ignorar a metade queimada de si mesmo e só olhar para a metade ruiva. A Pluma talvez ficasse paralisada para sempre. Fulbert invadiria Baynard e encontraria Tuen parada no tempo, cercando dois pesadelos e meio. Então, todos morreriam. Fim.

Pierre se aproximou do balcão, passou algumas instruções para Bojet e Gérmon sobre copos, cerveja e cidra. Eles pareciam estar num palco, o resto da Pluma era a plateia. Pierre se voltou para a clientela e deixou claro, com um dobrar de sobrancelhas, que, se alguém quisesse beber naquela noite, teria de pedir para um queimado.

A plateia não soube reagir. Nem sequer se viraram uns para os outros para confabular sobre o que fazer. Continuavam vidrados nos queimados. Coalim viu dragões nos olhos arregalados.

— Uma cerveja, por favor — pediu uma voz e a plateia, admirada, abriu um corredor de gente. No fim do corredor estava Leonard Acidentado.

O Acidentado pareceu se espantar com as pessoas abrindo caminho para ele. Se aproximou devagar do balcão, ou melhor, subiu ao palco. A plateia continuou em dúvida. O homem da barba preta e bigode branco seguiu Leonard. Jean colocou uma mão grande no ombro franzino do Acidentado e encarou Pierre sem piscar. O caolho Luc pediu cerveja com um gesto.

Todas as aberrações sobem ao palco, pensou Coalim.

E a plateia continuou imóvel até que veio da escada um grito que podia ser de dor ou de raiva. Uma risada seguiu o grito e uma espécie de rosnado humano seguiu a risada. Apareceram na escada Vivianne apoiada em Marie, a Mestra Curandeira rechonchuda de Tuen. Vivianne rangia os dentes de raiva e dor. Marie dava risada.

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