Capítulo 42: Maëlle - Dragões de verdade não morrem

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Neville sumia tão devagar no sul que Maëlle poderia alcançá-lo se tentasse. Não tentou. Um silêncio vívido acorrentava seus pés. Matar um dragão. Dragões de verdade não morrem assim.

— O que devo fazer? — perguntou Maëlle

— Por que um dragão destruiria uma cidade humana? — perguntou o Eslariano.

— Você sabe — disse Maëlle. — Foi você quem contou a nossos filhos, pois Robert também era filho nosso, todas aquelas lendas da Era Negra, cada aventura de Yukari Nakamura e Nastassja de Sátiron. Por que qualquer criatura mágica age de forma errática?

— Porque está doente de trevas.

— O que devo fazer? — repetiu Maëlle.

— Já fizemos o que devíamos — disse o Eslariano. — Se há realmente trevas na Franária...

— Você ainda duvida? Meu filho virou um corpo sem alma, a Franária inteira perdeu as cores, isto — abriu os braços para a devastação de Fabec e acrescentou em voz baixa para si mesma: — Este estômago cinzento que nos digere.

— Não podemos salvar a Franária, assim como não pudemos mudar Baynard. Eu vou encontrar minha filha e fugir deste país maldito. O que é isto?

O pé do Eslariano encontrou alguma coisa sólida. Ele ficou tonto quando baixou a cabeça, por isso Maëlle pegou o objeto para ele. Era um pedaço de pedra, o detalhe da base de uma coluna representando um sapo e a pata de um animal de mármore, provavelmente uma raposa talvez.

Um soldado veio avisá-los que estavam todos prontos para marchar. O Eslariano colocou a mão no ombro de Maëlle. O osso dela protuberava na pele sem recheio, mas continuava firme. Alguns meses de escravidão não bastaram para curvá-lo.

— Não me sinto bem — disse o Eslariano.

Ela sentiu febre na testa dele. Os soldados de Neville terminaram de organizar suas coisas e se preparavam para voltar, em marcha acelerada, a Debur, onde Maëlle e o Eslariano eram criminosos. Maëlle ainda tinha contatos na cidade, mas o Eslariano estava despencando sobre os ombros dela.

— Ele não conseguirá nos acompanhar — disse um soldado.

Maëlle concordava e procurou em volta por uma saída. Ela viu Esqueleto se afastando com passos firmes, o que significava que ele tinha para onde ir. Ela o chamou.

Esqueleto se virou devagar, como quem percebe uma corda que o prende — uma corda a ser degolada. Ele tinha, sim, aonde ir, e Maëlle o atrasava. Ela segurou o Eslariano pelo braço.

— Ele dividiu sua comida com você. Ele lhe deu água.

— Talvez fosse melhor ele ter me deixado morrer — disse Esqueleto. — Talvez seja mais humano eu deixá-lo morrer agora. — Ele mostrou as gengivas num sorriso de dentes amarelos. — Acontece que deixei de ser humano há muito tempo. — Voltou a andar. — Não me atrasem. E tenham em mente que eu passei vinte anos em Anuré. Muitas coisas devem ter mudado. Eu posso não ter mais para onde ir, e morreremos todos.

Maëlle voltou-se para o soldado de Neville.

— Nós nos juntaremos a vocês assim que pudermos.

O soldado lhes deu mantimentos e dois cobertores.

— Reuniremos em Debur todos os que são fieis ao capitão.

Maëlle passou o braço do Eslariano pelos ombros e seguiu Esqueleto, que já se afastava, contornando a Boca da Guerra. Esqueleto caminhava devagar. Talvez estivesse tão debilitado quanto o Eslariano. Vinte anos em Anuré deveria ter matado aquele homem, mas ele seguiu, a passos lentos, nunca diminuindo o ritmo, sem parar para comer ou beber, para Deran. Maëlle teve de amparar o Eslariano por todo o caminho. Quase perdeu o Esqueleto de vista três vezes, mas ela já tinha adivinhado que ele se dirigia a Sananssau, a cidade forte de Deran na Boca, e encontrou ele do lado de fora da cidade, encarando uma falha na muralha.

No topo, não havia guardas. Estavam todos vigiando a Boca. Nenhuma das cidades tinha guerreiros o sufuciente para vigiar todos os pontos cardinais.

— Vinte anos — murmurou Esqueleto — e a falha continua aqui. Vinte anos e ninguém vigia o norte. Guardas vigiam a Boca da Guerra feito abutres empalhados, mas ninguém olha para a Onda.

A muralha de Sananssau não era inteira de pedra. Fora construída às pressas no começo da guerra, sobre as ruínas de uma cidade que a Era Negra apagou. Taparam os buracos com barro. Uma dessas falhas no muro, Esqueleto cavou quando era jovem, fez um túnel, por onde agora ele, Maëlle e o Eslariano passaram. Dentro da cidade, Esqueleto parou. As ruas de Sananssau não eram pavimentadas. Até mesmo as vias principais eram terra batida. Casas baixas e largas de paredes brancas avermelhadas por terra.

— Nada mudou — disse Esqueleto. — A Franária não tem futuro. Ficou atolada na guerra.

A casa que ele procurava ficava no centro de Sananssau. Ali as ruas eram mais estreitas, as casas, menores e amontoadas; as paredes, menos brancas. Esqueleto parou frente a uma porta baixa. Hesitou. Maëlle pensou ter visto algo como tristeza esvoaçar em seu rosto negro. Durou pouco. Lá estava de novo a indiferença vazia de caveira com pele. Esqueleto bateu à porta.

Uma fresta se abriu e um olho fundo num rosto escuro espiou a rua. O olho se arregalou, a porta ameaçou fechar.

— Jaqueline — disse Esqueleto.— Sou eu. Seu pai.    

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