Capítulo 6: Vivianne - O Vulto de Lune

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Vivianne desenhou janelas, corredores, torres, ameias, portões. Ela desenhou todas as portas de Lune. Nos desenhos dela, o pai estava do outro lado das portas, prestes a entrar. Vivianne abriu todas as portas de Lune. O pai não surgiu atrás de nenhuma.

Todas as portas ela abriu, menos aquela. A do Vulto (apelido que ela criou para o homem de preto que o pai havia recolhido da tempestade logo antes de nunca mais). Ele continuava atrás da porta fechada. Colocavam comida do lado de fora e a comida sumia, mas o Vulto não ressurgia. Vivianne marchava para cima e para baixo no corredor. A cada dia ela chegava um pouco mais perto da porta, até que finalmente encostou o ouvido na madeira. Sentiu gosto de grama, cheiro de cinzas, folhas secas sob os pés descalços, e tudo através da orelha.

— Pequena Mestra — chamou um homem no fim do corredor.

Vivianne saltou para longe da porta e só então percebeu o barulho de muitas botas nas pedras de Lune.

— A Rainha Adelaide está aqui — disse o soldado. — Mestre Marcus pede a sua presença.

Vivianne esperou que o soldado a carregasse, mas ele não ofereceu o braço, o que significava que o assunto era sério. Crianças subiam nos ombros de adultos. Mestres de Lune andavam sobre os próprios pés. Na salão de reuniões de Lune, Marcus esperava sentado na cadeira do pai. Vivianne não gostou. Não porque a cadeira fosse do pai, mas porque o irmão pareceu muito pequeno sentado na cadeira enorme. Vivianne teria desenhado Marcus muito maior, ao menos para que a mão conseguisse abraçar por inteiro o punho da espada do pai.

A porta dupla do outro lado da sala grunhiu, rangeu e gemeu à passagem de Adelaide. Alta, de cabelos louros, a rainha de Deran trajava uma túnica azul escura, bordada na gola e nos punhos com fios de ouro. As calças de veludo preto sumiam debaixo de botas longas de couro marrom. Adelaide tinha traços de uma simplicidade que poderia ser agradável, não fosse seu rosto tão duro e áspero, como pedra entalhada por escultor sem paixão.

Ela vinha escoltada por cinco soldados da Pedra. Lune também tinha cinco soldados na sala, rodeando Vivianne e Marcus.

— Criança, sinto muito por sua perda — a rainha falou a Marcus. — Farei de tudo em meu poder para assegurar que você e sua irmã tenham uma vida confortável em seu novo lar.

— Nós temos Lune — disse Marcus.

— Seu pai morreu, você é muito jovem, o castelo passa a pertencer à coroa. — Adelaide tinha olhos fundos, largos, de um verde quase branco.

— O rei Clément tem a idade de Vivianne — disse Marcus.

— Por isso mesmo eu governo em seu lugar. Você tem uma semana para deixar Lune — disse a rainha, já caminhando em direção à porta. — Meus homens escoltarão você e sua irmã.

Os soldados da Pedra ainda estavam voltados para o salão, prontos a sacar suas espadas se os homens de Lune avançassem. A rainha, a meio caminho da porta, hesitou. Seus homens, um por um, olharam por sobre o ombro. Veio da porta uma sensação de calor intenso, no entanto, não houve qualquer mudança de temperatura. Vivianne chegou a sentir frio e um leve cheiro de cinzas fez cócegas em seu nariz.

Adelaide recuou até ficar entre os soldados da Pedra. A porta se abriu como cortina afastada por

vento e um vulto vestido em sombras se apossou do vão, do saguão, de Lune. Vivianne segurou a mão de Marcus, que apertou a dela. A sala pareceu se expandir, momentaneamente vista por uma lente de aumento. Embora nenhuma pedra tenha se movido, a sala inteira se dilatou, as paredes se distorceram, empurradas por uma força que não podiam conter.

O Vulto avançou devagar. Os soldados de Adelaide recuaram na mesma velocidade, folhas secas ao vento. Adelaide foi a única que não recuou. Ela, tão grandiosa um momento atrás, parecia agora pequena e seca, embora de certa forma ainda formidável, encarando sozinha as sombras dentro daquele capuz.

— O mestre defunto nomeou uma pessoa para olhar a propriedade até seus filhos crescerem. — Tinha voz sonora e funda, o Vulto. — Eu, Sáeril Quepentorne, me responsibilizarei pelos jovens Mestres de Lune.

A garganta de Adelaide se contraiu, pareceu convulsionar. Ela disse:

— Uma propriedade sem mestre passa a pertencer à coroa. A lei é antiga, data do Primeiro Império.

— A lei se refere à coroa da Franária, não à de Deran. — Sáeril se afastou para o lado dispensando Adelaide.

A rainha fugiu para o corredor. Menos de uma hora depois, Lune regurgitava os soldados da Pedra sob os olhos atentos de Marcus, Vivianne e Sáeril no topo da muralha.

— Obrigado — disse Marcus.

O Vulto assentiu com a cabeça e disse:

— Nossas aulas começam em três dias.

— Aulas?

O Vulto apontou para o exército que se afastava. — Você e sua irmã precisarão aprender a lidar com ela e muitas outras coisas para quando eu não estiver aqui.

Vivianne agarrou a ponta do manto preto. — Você vai embora?

O Vulto virou-se para a menina. Uma criança bonita, com cabelos dourados, olhos grandes e azuis. O irmão, Marcus, era bonito também, mas seus braços e pernas já haviam começado a esticar, prometendo altura e uma adolescência pouco graciosa.

— É da minha natureza viajar — disse Sáeril. — Sua segurança, creio, não exige minha presença constante. — Ele bocejou. — Preciso descansar mais alguns dias. Não estou completamente recuperado e é difícil conter minha magia.

Vivianne queria perguntar mais sobre magia e partidas, mas o Vulto já descia as escadas, o manto uma cascata negra atrás dele.

No pé da escada, Sáeril hesitou. Pensou ter sentido o roçar de trevas em sua magia. Qualquer coisa furtiva, bicho assustado que se recolhe. O Vulto esperou, mas as trevas não voltaram. Ele tentou se convencer de que era apenas cansaço, mas Sáeril Quepentorne conhecia trevas. Sabia onde elas empoçavam e o tipo de horror que podia nascer dentro delas. Que a Franária estivesse coberta de trevas não espantava Sáeril. Quatrocentos anos de guerra acumulavam todas as coisas que alimentavam trevas. Feito musgo grudado em umidade, trevas brotavam em tudo o que era dor e horror.

Muitos temiam as trevas em si, consideravam-nas malignas, mas a escuridão era apenas uma força, como magia, vida e morte. Não era ela que causava a dor, era a dor que a atraía. O problema era o que podia nascer de um ninho de trevas.

O perigo não era o oceano, mas o dragão dormindo fundo.


Para as ilustrações, visite meu blog: www.tartarugaescritora.com    

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