Capítulo 90: Sua espera terminou

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O jardim de sombras era mais misterioso à noite do que durante o dia. O luar chegava onde o sol não tocava, o painel de mármore sinistramente branco, a sombra em baixo-relevo preta como uma ausência.

Neville trazia uma tocha. A luz da chama submeteu-se ao luar. Hera de estrelas, lâminas de grama imóveis como respiração suspensa. Sombras dançavam. As flores também balouçavam a vento nenhum. Cada pétala um véu. Atrás de cada véu, um futuro; na frente, um passado, e pétalas púrpuras presas entre um e outro. Pétalas frágeis, facilmente destroçadas, como seda por qualquer espinho.

O lobo de mármore estava antes e depois de todas as pétalas. A sombra e a árvore, faróis num mar de eternidade, mostravam o caminho para aqui, para agora.

— São os três lobos de Sátiron — sussurrou Frederico — o lobo negro de sombras, o lobo dourado das esperanças e o lobo cinzento, mestre de mentes. Um dos livros da Velha falava sobre eles.

Um livro de mármore no jardim de sombras. Que páginas se abririam por trás dessa capa? Que histórias de magia, mistério, morte? E o lobo cinzento, só de olhar, avisava: livros como este, uma vez abertos, nunca mais se fecham.

— É tarde demais — disse Frederico. — O livro já não tem capa.

Ao mesmo tempo, enfrentar o mármore era dar o primeiro passo no corredor-ponte de seu pesadelo, iniciar a travessia para o lado de cá, onde noite após noite sonharia com ganidos de sangue e ausências de Faust. Neville avançou, esticando a haste negra de poder amarrada ao braço de Frederico. Pelo menos, com Neville a puxá-lo assim, Frederico podia seguir em frente sem ter de abandonar as trevas.

Neville sentiu, sem tocar, a textura do painel, dos pelos selvagens do lobo cinzento, da sombra áspera deitada no chão, das folhas lisas da árvore dourada. E o sopro da História alisando o pelo, dançando com as folhas, empoeirando a sombra.

Neville deu um passo em direção ao mármore.

— Já evitei esta história por tempo demais.

Cada passo, um rasgo quente no estômago, uma traição. Agir agora, que Robert estava morto. Tarde demais. Tarde demais!

Não para a Franária, havia dito Pierre. Para nós apenas, não para a Franária.

Será que só Vivianne estava com medo? Notou Gregoire, colado ao chão. Pegou-o pelo cotovelo, seguiu arqueiro e príncipe para dentro do mármore.

Levei um susto quando Vivianne agarrou meu braço. Não me passou pela cabeça seguir aqueles dois para além-mármore. No entanto ali estava ela, pendurada no meu cotovelo. Dei um passo à frente. A um observador pareceria que eu a estava puxando, mas a verdade é que ela estava me empurrando.

Avante, para dentro do painel de luar e mistério. Luz pastosa, pedra líquida. Pegadas em nevoeiro de mármore. Nevoeiro que era areia, se esticava e submergia num mar de grama imóvel.

Imóvel grama sob as botas. Acima, milhares de pequenos pedaços de noite e lua, peneiradas por copas de adormecidas árvores; o céu, um gigantesco mosaico de preto e brilho. Mais alguns passos, um dégradé de folhas até a noite límpida.

— Memórias de Gregoire

Neville ouviu o som de mais pés. Os outros o haviam seguido ao gramado amplo como o pomar das macieiras. No centro do gramado, uma torre solitária. A tocha de Neville ainda queimava, mas a chama era fria e branca.

Frios e negros eram os olhos da menina em pé entre eles e a torre. Negros quase líquidos, os cabelos compridos. A menina tinha, talvez, dez anos de idade, mas seus olhos refletiam o luar de uma lua antiga, ancestral da que prateava o céu.

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