Capítulo 21: Neville - A gente aqui às vezes

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Os muros de Fabec eram amarelos cor de doença. Anos antes, a mãe de Neville havia dito que a Boca da Guerra era uma vala comum para os soldados de toda a Franária; que as pessoas ali estavam mortas, só a pele ainda vivia e a boca se movia por hábito. Neville havia imaginado gente com expressão de peixe, as bocas abertas, gritando por vida e a vida ignorando; os olhos, puro horror.

Não eram assim as pessoas de Fabec. Uma boca que implora ainda tem vida. Olhos que temem querem viver. Em Fabec as pessoas estavam apagadas. Borrões em movimento, fantasmas em sacos de pele. A cidade parecia mais uma memória do que uma fortificação. As casas antigas engordaram de tanto digerir séculos e empurravam vigas escuras para cima das calçadas. O pavimento das ruas havia desaparecido em vários trechos e a terra cinzenta arenosa se expunha ao sol como feridas em carne viva.

Neville havia enviado um mensageiro a Fabec, prevenindo a chegada de um novo capitão, mas ninguém o esperava. O quartel de Fabec era uma construção quadrada, erguida sobre um patamar de mármore, rodeada por colunas, que sustentavam um teto de mármore sem adornos, colocado ali apenas para proteger os mosaicos do chão, já quase apagados por centenas de anos de calcanhares duros. Mal se enxergavam três lobos, um preto, um cinza e um amarelo, uma árvore dourada. A um canto estavam um sapo e uma raposa. Estranho, mas aqueles dois mosaicos pareciam ser as únicas criaturas em Fabec que o esperavam.

Neville mandou que seus cem soldados tristes esperassem por ele nos mosaicos e entrou. Por dentro, a Casa Quadrada era oca. Um grande pátio interno se abriu vazio aos pés de Neville. Ele encontrou um soldado no corredor aberto e perguntou pelo capitão de Fabec, e um soldado apontou para o andar de cima. Não perguntou quem Neville era. Já sabia ou não se importava?

O andar de cima, assim como o de baixo, era, de um lado, um corredor aberto para o pátio interno, do outro, uma sequência de entradas, algumas sem porta, outras fechadas por placas que pareciam ter sido resgatadas de entulhos, uma ou outra porta de madeira. Ninguém. Onde estavam os soldados?

Neville podia enxergar uma parte da muralha do segundo andar da Casa Quadrada. Ali, ele viu sentinelas: urubus encarapitados sobre o muro, apoiados em lanças, esperando a morte. Do inimigo ou deles mesmos? Ele apurou os ouvidos, mas não ouviu barulho de guerreiros treinando. O cheiro de Fabec era fraco, como uma fumaça que já passou.

Um homem surgiu no corredor, saído de uma das salas com porta de papelão. Neville foi até ele, que só percebeu a aproximação quando Neville pisou na sua sombra. Levou um susto, ou pelo menos Neville pensou que o homem levou um susto, pois houve um leve arregalar de olheiras e até um quase levantar de mãos, mas foi um movimento cinzento. A pele parecia pesar. O homem tinha rugas, mas umas rugas estranhas, de desgaste mais do que de idade. Até a careca tinha rugas, dessas de couro sem graxa.

— Sou o capitão Neville de Baynard. Onde está o Capitão de Fabec?

O homem apontou para o quarto de onde acabara de sair. Neville entrou. A janela estava fechada e Neville demorou alguns segundos para perceber que não havia ninguém ali.

— Onde ele está? — perguntou Neville.

O homem careca apontou para a cama. Ali jazia o corpo de um homem, coberto dos pés à cabeça por um lençol amarelo cor de doença.

— Morreu em batalha? — perguntou Neville.

— A gente aqui às vezes morre — disse o homem da cabeça de couro.

Neville levantou o lençol para ver o rosto do capitão falecido. Os olhos estavam abertos. Neville tentou fechar, mas eles voltavam a abrir.

— Não adianta — disse o careca. — Ele tem medo de fechar os olhos. A gente aqui às vezes tem medo do escuro.

Neville voltou a cobrir o rosto defunto.

— Isso significa que sou seu novo capitão — disse Neville.

— Parabéns — disse Cabeça deCouro — você está morto.    

    

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