O jardim de sombras era mais misterioso à noite do que durante o dia. O luar chegava onde o sol não tocava, o painel de mármore sinistramente branco, a sombra em baixo-relevo preta como uma ausência.
Neville trazia uma tocha. A luz da chama submeteu-se ao luar. Hera de estrelas, lâminas de grama imóveis como respiração suspensa. Sombras dançavam. As flores também balouçavam a vento nenhum. Cada pétala um véu. Atrás de cada véu, um futuro; na frente, um passado, e pétalas púrpuras presas entre um e outro. Pétalas frágeis, facilmente destroçadas, como seda por qualquer espinho.
O lobo de mármore estava antes e depois de todas as pétalas. A sombra e a árvore, faróis num mar de eternidade, mostravam o caminho para aqui, para agora.
— São os três lobos de Sátiron — sussurrou Frederico — o lobo negro de sombras, o lobo dourado das esperanças e o lobo cinzento, mestre de mentes. Um dos livros da Velha falava sobre eles.
Um livro de mármore no jardim de sombras. Que páginas se abririam por trás dessa capa? Que histórias de magia, mistério, morte? E o lobo cinzento, só de olhar, avisava: livros como este, uma vez abertos, nunca mais se fecham.
— É tarde demais — disse Frederico. — O livro já não tem capa.
Ao mesmo tempo, enfrentar o mármore era dar o primeiro passo no corredor-ponte de seu pesadelo, iniciar a travessia para o lado de cá, onde noite após noite sonharia com ganidos de sangue e ausências de Faust. Neville avançou, esticando a haste negra de poder amarrada ao braço de Frederico. Pelo menos, com Neville a puxá-lo assim, Frederico podia seguir em frente sem ter de abandonar as trevas.
Neville sentiu, sem tocar, a textura do painel, dos pelos selvagens do lobo cinzento, da sombra áspera deitada no chão, das folhas lisas da árvore dourada. E o sopro da História alisando o pelo, dançando com as folhas, empoeirando a sombra.
Neville deu um passo em direção ao mármore.
— Já evitei esta história por tempo demais.
Cada passo, um rasgo quente no estômago, uma traição. Agir agora, que Robert estava morto. Tarde demais. Tarde demais!
Não para a Franária, havia dito Pierre. Para nós apenas, não para a Franária.
Será que só Vivianne estava com medo? Notou Gregoire, colado ao chão. Pegou-o pelo cotovelo, seguiu arqueiro e príncipe para dentro do mármore.
Levei um susto quando Vivianne agarrou meu braço. Não me passou pela cabeça seguir aqueles dois para além-mármore. No entanto ali estava ela, pendurada no meu cotovelo. Dei um passo à frente. A um observador pareceria que eu a estava puxando, mas a verdade é que ela estava me empurrando.
Avante, para dentro do painel de luar e mistério. Luz pastosa, pedra líquida. Pegadas em nevoeiro de mármore. Nevoeiro que era areia, se esticava e submergia num mar de grama imóvel.
Imóvel grama sob as botas. Acima, milhares de pequenos pedaços de noite e lua, peneiradas por copas de adormecidas árvores; o céu, um gigantesco mosaico de preto e brilho. Mais alguns passos, um dégradé de folhas até a noite límpida.
— Memórias de Gregoire
Neville ouviu o som de mais pés. Os outros o haviam seguido ao gramado amplo como o pomar das macieiras. No centro do gramado, uma torre solitária. A tocha de Neville ainda queimava, mas a chama era fria e branca.
Frios e negros eram os olhos da menina em pé entre eles e a torre. Negros quase líquidos, os cabelos compridos. A menina tinha, talvez, dez anos de idade, mas seus olhos refletiam o luar de uma lua antiga, ancestral da que prateava o céu.
A menina fez um arco elegante com o braço, convidou-os a entrar.
— Chá? — perguntou.
E a tocha queimando em branco.
Por trás da porta de madeira grossa, linguentada em ferro, a torre era muito mais comfortável do que ameaçava a rocha áspera do exterior. O pequeno saguão de entrada havia sido adaptado em um apartamento. A menina, que se apresentou como Yukari Nakamura, pediu que tirassem os sapatos na entrada e Vivianne se surpreendeu ao sentir madeira sob os pés descalços. Torres franesas de antes do Império tinham chão de pedra. Mas o interior da torre era mais satironês do que franês. Vivianne notou com os pés a maciez do encaixe entre as tábuas de madeira atapetando o chão.
A decoração, os móveis, tudo remetia a Sátiron. Vivianne costumava ser contra adaptações, mas admitia que nenhuma torre franesa dessa idade podia ser tão confortável quanto aquele pequeno apartamento.
Yukari começou a manusear apetrechos e ervas. Vivianne já havia visto cerimônia parecida na caravana de Rimbaud, mas nunca com movimentos tão perfeitos, suaves como o perfume verde que enebriou o ambiente.
Os três homens se sentaram calados, hipnotizados pelas mãos de Nakamura. A menina não havia se apresentado, mas todos ali sabiam quem viva do outro lado dos lobos.
— Por que você vive perto da porta? — perguntou Vivianne. — Tradicionalmente vive-se no último andar de uma torre.
— Por proteção — disse Yukari.
— Não é mais seguro no topo?
— Se o inimigo ganhar a base, ele ganha a torre. Sou eu quem protege a porta, não o contrário.
Neville não prestava atenção à conversa sobre portas, torres e arquiteturas. Junto com o perfume verde de vapor e ervas, sentiu alguma coisa lisa, como a água daquele riacho que que escorregara entre seus dedos na presença do mistério Nuille. Só que uma magia diferente, distante, amorfa e morna.
Frederico pousou a xícara sobre o pires com mãos trêmulas. Atrás do cheiro doce de chá amargo, por cima dos cabelos de seda negra da menina Yukari, Frederico viu uma estante com livros. Um deles tinha capa azul cor de madrugada.
Frederico nem notou que levantou. Quando deu por si, já havia alcançado o livro antigo. Seus dedos cinzentos suspiraram contra a lombada azul. Reconheceram as letras ali gravadas, embora nunca tivessem aprendido o significado delas.
— Onde você conseguiu este livro? — perguntou.
— Em Sátiron — disse a menina.
— Não sabia que havia cópias.
— Esse é o original. Há uma cópia apenas.
Frederico apoiou a testa contra a estante.
— Não existe mais. Foi queimada.
— Eu sei — disse Yukari. — Terminei a nova cópia ontem à tarde. Pode vê-la, se quiser. — Levantou-se e abriu uma porta ao lado da estante de livros. Um grito empoeirado de águia escapou pela brecha.
Vivianne pousou seus pés descalços em pedra lisa. Paredes forradas com estantes lotadas de papel, do chão ao teto. Folhas grossas e ásperas, folhas quase transparentes de tão delicadas, folhas largas, folhas longas, enroladas, dobradas, umas novas, outras se desfazendo, amarelas, azuis, pisadas, alisadas, cobrindo paredes e colunas, dando a impressão de que a torre por dentro era feita de papel.
Um sibilar discreto fez coçar a sola do pé de Vivianne, percorreu perna, espinha, até eriçar os cabelos loiros. Vivianne deu um pulo, bateu de encontro a Neville. Onde seu pé estava um instante atrás havia uma cobra desenhada com mármore verde, emoldurada em mármore preto.
Por todo o chão, animais. Unicórnios e cervos, lobos e grifos. Vivianne olhou ao longo do corredor de papel, interrompido a intervalos regulares por facadas de luar através de janelas finas na distância do corredor aparentemente infinito. Aquilo não era arquitetura gorgathiana nem franesa. Não era arquitetura.
E todos aqueles animais de mármore — Vivianne teve a sensação de que nenhum deles gostava de ser pisado. Pela postura protetora de Neville ao seu lado, ele sentia o mesmo que ela.
Neville inteiro era pele. Olhos, ouvidos, nariz — tudo pele. O mundo, uma nuvem de texturas, como pó atiçado pela queda de um objeto pesado. Teias de aranha pesavam o ar, aprosionando a torre, o vento, a História. Neville conhecia aquelas teias de aranha. Ele sentiu, muito antes de ver, o homem descendo o corredor. Velho e murcho como uva ensolarada, caos branco ao redor de rosto gasto. Lutava para mover-se contra as teias de aranha que ele mesmo exalava. Rasgava-as com mãos juntosas, tropeçava nelas, dobrava-se sob o peso das que se empilhavam em suas costas.
O velho parou na frente deles, lançou um olhar enevoado a Gregoire. Neville tinha se esquecido de Gregoire. A pupila do velho soltou uma faísca amarela, que atravessou o nevoeiro de teias, como luz ligeira escapando por cortina que o vento por um instante moveu. Mas Gregoire não era a ventania capaz de erguer as cortinas daqueles olhos naufragados. Então os olhinhos seguiram em frente, encontraram Neville.
— Fregósbor! — disse Neville.
Ele pegou o braço do velho mago. As rugas na pele murcha escalaram pela mão negra de Neville em forma de teias de aranha, que aprisionaram seu corpo e sua continuidade. Ficou preso num momento que passou, foi embora, deixou-o para trás. Não conseguiu seguir o tempo, não podia mais existir. Tentou se libertar, correr atrás da existência. Quanto mais se debatia, mais as teias o enrolavam.
Mas Neville havia encontrado Nuille. O poder da memória ainda formigava nas linhas de seus próprios calos. Rasgou as teias do seu peito com tanta violência que perdeu o equilíbrio. Quase despencou para fora de seu tempo, sua vida, a História.
Um toque em sua mão. Nada mais que um toque de Yukari Nakamura. A maciez concreta de antigos dedos jovens devolveram solidez a Neville.
— Obrigado — ele disse à menina.
— O que foi aquilo? — Perguntou Vivianne. Olhou as teias rasgadas flutuando fantasmagóricas, grudadas ao caos da barba do velho murcho.
— Realidade tentando tapar uma ruptura — disse Yukari.
— O que isso quer dizer?
— Fregósbor devia ter morrido muito tempo atrás. Não morreu. A realidade não pode aceitar sua existência; ele é uma fissura, um grão de areia na almofada da realidade.
Neville aproximou a boca do ouvido de Fregósbor.
— Sua espera terminou — disse. — A História está aqui. Ela se chama Pierre.
As teias empoeiradas recuaram como onda lambendo praia, e os olhinhos amarelos quase alcançaram a superfície, mas nova onda de teias despencou e afogou mais uma vez a alma amarela sob eras que Fregósbor não devia ter visto.
Frederico não percebeu o mago Fregósbor. As trevas o protegiam das nuanças mágicas, das teias de aranha de eras passadas, da História. Yukari o havia guiado até um livro novo azul sobre uma escrivaninha. A capa exibia os mesmos caracteres do livro antigo na estante do saguão de entrada. Frederico pediu permissão com os olhos, pegou o livro e abriu. Reconheceu as páginas, infinitas vezes viradas, nunca lidas. Naquelas letras satironesas ouviu a Velha ralhando.
Mexa essa bunda vagabunda e faça algo útil.
E o braço de Frederico queimou onde se enrolava a haste negra da árvore de Neville.