A Cuca colocou ambas as mãos sobre os dois ombros de Haddock que simplesmente não soube como reagir quando os intensos olhos verdes caíram sobre os seus. Então, ela o puxou para um abraço. O menino não soube como reagir por alguns segundos; quando levantou os braços para retribuir o gesto, ela o soltou e voltou a encará-lo profundamente.
– Obrigada. – Ela disse, o que simplesmente o deixou mais confuso. Pelo jeito, a Cuca notou essa confusão, pois acrescentou: – Eu sei, tudo começou por sua causa, mas algo muito importante aconteceu por causa dela. Tem alguém que eu quero que você conheça.
A mulher, se é que poderia ser chamada assim, que esteve conversando com alguns dos lobisomens veio caminhando na direção deles. Ela tinha a pele vermelha, não queimado vermelho como o próprio Haddock ficava quando tomava sol, mas sim vermelho, como um tomate, porém fosco.
Tirando os seios e suas cochas, que estavam cobertos com roupas feitas de pele de onça, todo o resto estava a mostra. Suas orelhas eram pontudas, ultrapassando até mesmo seu cabelo volumoso em um tom mais escuro de vermelho. Quando ela sorriu para Haddock, seus dentes eram pontiagudos.
– Esta é...
– Caipora. – Haddock interrompeu, quase ganhando um sopapo por isso.
– Sim. Desde que Miguel Corte-Real esteve em Akuawa, ela partiu para construir nosso novo lar. Desde então, não tive contato com ela. – A Cuca contou. – Graças a você, eu finalmente tomei coragem para buscá-la, pois os perigos do lugar onde estava eram muitos. Eu sei que diversos sykyes morreram, e isto sempre pesará em nossos corações, mas fui capaz de recuperar minha irmã, assim como o Boitatá agora está livre de sua função.
– De nada. – O menino respondeu hesitantemente, sem entender a lógica da Cuca, mas não fazia diferença; o importante era que a bruxa não o culpava mais, não que ele mesmo não o fizesse. – O que vai fazer agora?
– Vou me juntar aos outros sykyes assim que você trouxer Vicente. Preciso da Itamaní de Tupã para impedir que inimigos – ela enfatizou muito bem essa palavra, como que para demonstrar que já não odiava todos os humanos – tentem nos fazer mal. Eu decidi que vou com você.
Os olhos de Haddock abriram-se como laranjas. Imediatamente, a pressão de ter uma semideusa o tempo todo observando e julgando suas decisões. Virou-se para Dandara, que fazia o possível para conter uma gargalhada.
– Sem problema. – Ele disse pausadamente.
Então, a Caipora, a Cuca e Dandara começaram a rir alto e animadamente. Haddock sentiu o rosto esquentar por se tornar o centro da piada, mas pelo menos, aquilo significava que a semideusa, de fato, não iria com eles. Ao mesmo tempo, ele não via tanta graça.
Dandara entregou a ele uma pequena estátua de madeira no formato de uma quimera. Haddock pôde sentir a magia de Arloth ali. Sabia, porém, que sua magia não se misturaria perfeitamente com o objeto. A natureza fenícia do feitiço era estranha, quase não natural, em comparação a Arte.
– Onde está? – Dandara disse ansiosamente. – Arloth disse que assim que tocasse, saberia.
– Mas não sei. Há um bloqueio, como se não quisesse ser encontrada.
Ficou alguns minutos encarando o objeto antes de finalmente decidir como ativariam os feitiços ali para os levarem até Porací.
A Cuca os levou até o templo principal da abandonada Akuawa. Ali, as quatro estátuas dos deuses encaravam o centro do salão, onde a feiticeira invocou seu caldeirão mais uma vez. O ferro preto e chamuscado não era grande o bastante para um adulto, mas com certeza caberia um bebê de seus dois ou três anos.
Antes de conjurar e preparar a mistura que os ajudaria, a Cuca pediu a estátua. Abraçou-a com ambas as palmas, escondendo-a dos outros e fechou os olhos. Levou longos minutos, mas ela finalmente abriu os olhos.
– Sinto um pouco do poder dos velhos deuses guaranis. E não é a Itamaní de Tupã. – Haddock notou um pouco da raiva que ela costumava ter. – O que está buscando, garoto?
Quando Haddock contou o que havia descoberto no La Francese, a Cuca fora pega completamente de surpresa. Haddock podia ver que ela visitava memórias antigas, mais especificamente, de cinquenta anos antes.
– Quando tiverem Porací, tragam-na até aqui. Eu e meus irmãos esperaremos para que a mandemos de volta para as estrelas.
A Cuca esticou as mãos para os lados e uma larga fumaça verde saiu delas. Ela foi tomando forma de prateleiras, frascos e o mais diverso tipo de objetos mágicos. Haddock notou que muitos deles estavam na antiga biblioteca onde tiveram a primeira conversa logo após a chegada dele e de Dandara em Akuawa.
Tomando vários pós, líquidos e pedaços de animais, alguns irreconhecíveis, ela formou uma poção no caldeirão. Usou sua ancestral língua para misturar e conjurar seu feitiço no caldeirão. Haddock notou o intenso brilho verde em seus olhos, enquanto seus braços, até quase a altura dos ombros, tornavam-se escamoso e verde musgo, como um jacaré. Por fim, jogou a pequena quimera dentro.
Movimentos verticais de mãos e braços trouxeram o líquido, agora num tom escuro de azul, com pontos brilhantes e outros maiores coloridos – algo que lembrava o céu da plataforma onde enfrentou a cacya gigante, em outras palavras, o espaço sideral – para fora do caldeirão. Ela o dividiu em dois, dobrando os braços e puxando-os levemente para si.
– Sinto muito.
Numa cinesia bruta, ela jogou cada metade do líquido no peito de um deles. Haddock sentiu o lugar do impacto queimar, mas logo a sensação se espalhou intensamente por todo seu corpo, incapacitando-o de se mover, nem mesmo para ver como sua companheira de viagem estava.
Quando a queimação atingiu seus olhos, ele já não enxergava. Tudo se tornou uma imensa negritude, como uma noite sem lua. Sentiu que perderia a consciência, mas isto não aconteceu. A dor passou a recuar, até não ser nada além de um incomodo no peito.
Estava caído no chão, mesmo não tendo certeza de quando havia acontecido. Ao abrir os olhos, descobriu Dandara caída ao seu lado. Tentou chamá-la, mas sua voz não passava de um sussurro rouco. Levou um longo tempo para finalmente conseguir dizer:
– Onde estamos? – Ainda assim, não era nada além de um murmúrio.
– Não sei.
Era uma floresta, disso ele sabia, mas já não estavam na Amazonia. O frio era intenso demais para que estarem perto do equador. Quando finalmente conseguiu se levantar, descobriram-se em uma espécie de plataforma ao lado de uma montanha que, por sua vez, estava coberta de árvores grande e altas.
Haddock se perguntou como elas poderiam crescer tanto ser ter raízes longas o bastante para sustentá-las, afinal, estavam sobre pedras. Mesmo não sendo especialista em botânica, mas conhecendo o bastante das espécies da Terra, ele não reconheceu as árvores, o que poderia indicar que já não estavam em seu mundo de origem, ou no mínimo, não em um lugar comum.
O garoto tentou um feitiço de localização, mas sentiu uma intensa dor de cabeça, forçando-o a parar imediatamente. Dandara veio socorrê-lo, perguntando o que aconteceu.
– Não sei. Algo neste lugar me impede de saber onde estamos. É como se tivéssemos uma bússola que não para de girar.
– O que fazemos agora?
O menino, se recuperando, olhou em volta, notando um pequeno objeto de madeira um pouco a frente de onde tinham despertado, junto a uma pedra. Tomou a estátua da quimera e, imediatamente, sabia o caminho que tinham que seguir. Não era, de fato, um conhecimento, mas sim uma sensação.
– Seguimos a estátua. Porací está próxima.
Cautelosamente, a dupla desceu pela costa da montanha, usando galhos e troncos para equilibrarem-se e não rolarem para suas mortes. A noite começava a despontar no céu, o que significava que logo Dandara assumiria sua forma de mula-sem-cabeça. Aceleraram o passo quando notaram uma pequena linha de luz vermelha vinda do oeste, ou pelo menos, Haddock deduziu ser o oeste.
Antes de chegarem à base da montanha, encontraram uma pequena gruta, apenas grande o bastante para que os dois pudessem montar um pequeno acampamento. Enquanto Haddock dormia no chão junto a fogueira para proteger-se do frio que, de repente, dominou a noite, Dandara ficou à porta, vigiando a noite e as criaturas que vagavam; nenhuma delas se aproximou, mas ela não sabia a razão.
Haddock acordou no meio da noite com raiva dos sonhos que tivera. Não eram pesadelos, longe disso; sonhara com sua mãe, seu pai e seu padrasto. Logo que abriu os olhos, já tinha esquecido metade do sonho, mas lembrava-se de que sua mãe estava chorando, enquanto os dois homens brigavam por alguma razão.
Decidiu que não dormiria mais, ainda mais considerando que o céu não estava o azul-marinho da noite cheia, mas um leve azul clareando. O dia começava. Sentou-se ao lado de Dandara, que levantou sua cabeça em chamas e voltou a deitar em seguida.
O menino, ao olhar para o céu, notou algo voando de um lado para o outro. Estava muito, muito longe, pois tal objeto tinha apenas cinco centímetros de seu ponto de vista. Era um objeto meio cilíndrico, com algo que julgou como barbatanas em cima e em baixo, apesar de terem formatos diferentes. Em uma das extremidades horizontais, havia lemes e elevadores.
Sua ficha caiu no mesmo instante. Sabia exatamente onde estavam, ou pelo menos, conhecia algumas lendas e histórias contadas por homens que, por acidente, chegaram e saíram deste lugar.
– Estamos em Mu. – Ele disse.
Dandara não respondeu de imediato. Sua transformação de volta a humana começou. Haddock ficou de costas para a parte de dentro da gruta, onde acontecia. Dandara vestiu-se das roupas que traziam consigo desde que saíram de Taquar.
– Como sabe?
– Não sei. É apenas um palpite.
Voltaram a descer a montanha. Haddock podia sentir seu estômago praticamente tremendo de fome, mas não disse nada. Não tinham comida e não conhecia os frutos ao seu redor para garantir que não eram venenosos. Tocaram o pé da montanha algumas horas depois.
A quimera os guiou pela floresta. Passaram por cabriúvas e pinheiros; o chão tinha tundras e roseiras selvagens; sem contas as estranhas e diversas árvores desconhecidas, com folhas do tamanho de sua cabeça e troncos finos como seu pulso; e outras grossas o bastante para que quinze homens de mãos dadas pudessem abraçar.
A vegetação daquele lugar não fazia o menor sentido. As que ele conhecia eram árvores que vinham de climas completamente diferentes, desde o frio congelante do ártico até o calor intenso das savanas africanas. Haddock não sentia magia no ar ou no solo, o que explicaria tal ocorrência. Não conseguia imaginar como a ilha era capaz daquilo.
O ataque veio de surpresa, lançando o menino por alguns metros. Se recuperou rapidamente, a tempo de ver Dandara usando algumas árvores para proteger-se das garras do luisón. Haddock soltou sua corrente – que recuperara depois de mandar seu pai para a Argentina – e a lançou como um chicote contra um dos braços do sykye que estava prestes a ferir sua companheira.
Os olhos vermelhos da criatura voltaram-se para Haddock. A pura fúria que transmitia era praticamente palpável. Ele agarrou a corrente esverdeada com a mão livre e a puxou; em seguida, fez o mesmo com a outra mão.
Haddock estava sendo lentamente puxado na direção do sykye. Seus pés afundando na terra, criando pequenas trincheiras conforme era arrastado.
– Não estou aqui para te machucar! Ou a Porací! – O menino disse em voz alta, mas não pareceu surtir qualquer efeito. – Preciso das Itamanís! A Cuca me mandou!
A menção da feiticeira fê-lo parar por um segundo, mas quase imediatamente em seguida, seus olhos piscaram em azul antes de voltar para o vermelho original. Voltou a puxar o menino. Quando Haddock estava próximo o bastante, ele soltou a corrente e agarrou-o pelo pescoço, levantando-o a quase um metro e meio do chão.
Dandara acertou o sykye com força na cabeça usando o maior e mais grosso galho que conseguiu carregar, libertando Haddock. No chão, o menino tossiu algumas vezes antes de dizer em uma voz ríspida pelo machucado em sua traqueia:
– Zincir dereva.
De repente, as corretes pareceram criar vida. Soltaram-se completamente dos braços de Haddock e envolveram o luisón rapidamente, prendendo-o pelas quatro patas para trás, em um ângulo dolorido que o contorcia de modo a forçá-lo a ficar de joelhos. Mesmo assim, ele ainda era um pouco mais alto que Haddock.
– Eu não estou aqui para machucá-lo. – repetiu, enquanto colocava a mão sobre a cabeça de Vicente. – Mas preciso saber onde estão as Itamanís. Akin nzi inoler.
Ao contrário do que esperava, tudo que viu na mente da criatura foi um espaço preto e vazio, cujo chão era coberto por uma camada fina de água. Olhando para cima, descobriu apenas uma estrela brilhante; aquela na qual Porací um dia fora transformada.
Haddock foi lançado mais uma vez contra sua vontade quando foi expulso da mente do luisón. Chocou-se contra uma árvore, sentindo que um de seus galhos quase perfurou sua pele. Em dor, levantou-se. Dandara correu até ele e o apoiou.
Palavras em guarani vindas de uma voz jovem e firme, porém doce, veio assim que Dandara passou a mão de Haddock sobre seu ombro. Porací estava junto de Vicente, mas seu rosto frustrado poderia indicar que ela havia tentado quebrar a corrente de Haddock sem sucesso.
Porací era ainda mais bonita do que a névoa esmeraldina havia feito jus. Estava nua, mas não tinha qualquer sinal sexual nela, como se usasse tapa-sexos. Sua pele era de um azul-marinho vibrante, com pontos brilhantes que se movimentavam. Havia nuvens laranjas, vermelhas, amarelas e outras cores. O menino soube que eram nébulas. Sua pele refletia o espaço. Seus olhos, então, eram como sóis: grandes, brilhantes e acalorados. Ele simplesmente não sabia dizer quais eram suas cores.
Haddock podia sentir uma magia extremamente pujante vinda dela. Era um poder bruto, cru, incontrolado, quase como o poder de um Yàn que acabou de ser escolhido. Quando humana, ela não era feiticeira; e agora, ela era algo completamente diferente e único. Não era uma deusa, estava muito acima. Porací existia acima de qualquer raça mortal ou imortal nos mundos.
– Ela está pedindo para que soltemos Vicente. – Dandara, para surpresa de ambos, traduziu. Mais uma vantagem de se tornar uma mula-sem-cabeça: bilíngue instantâneo. – Ou nos evaporará.
– Diga o que viemos fazer aqui.
Dandara fez, ou pelo menos, Haddock deduziu que tinha feito, como ele explicara. Os sóis foram do luisón para os dois algumas vezes antes de ela dizer qualquer coisa. Por fim, Dandara traduziu mais uma vez, dizendo para que eles esperassem ali. Porací desapareceu em uma explosão de luz azulada.
Os minutos que ela levou para voltar foram longos. Haddock aproveitou para curar seus ferimentos da melhor maneira que pôde.
Um terremoto pegou-os de surpresa. Haddock arregalou os olhos, pois sabia exatamente o que aconteceria muito em breve. Mu era conhecida por ser uma ilha que muda de posição o tempo inteiro; e como nem sempre está na Terra, muitos feiticeiros deduziam que ela viajava pelos mundos. Trocaram olhares. Se a mulher não aparecesse, o caminho de volta seria muito, muito mais longo.