Capítulo 66: Vivianne - A tormenta humana

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A rotina se quebrou, pensou Vivianne.

— A Fronteira chegará em breve — prometeu Pierre. — Vocês não estão sozinhos. Eu preciso encontrar o dragão.

Pierre foi até a saída. Na hora em que ele abriu a porta, uma tormenta humana despencou dentro da Pluma. O capitão Gaul de Tuen entrou carregando um homem nos ombros feito um saco de farinha. Dois soldados seguiram o capitão, mas o barulho todo vinha de Marie, Mestra Curandeira, de braços gordinhos ora erguidos, ora para os lados, em eterna demostração de horror.

— Isso não é jeito de carregar um homem ferido — gritava.

— Ei, Pierre, — disse Gaul, descarregando o homem sobre a mesa. — Achei mais um pobre coitado para você. Este não tem o charme dos seus queimados, mas também está quase morto, do jeito que você gosta.

Vivianne se aproximou do homem sobre a mesa. Tinha traços eslarianos. O olhos inchados tinham contornos de roxo e preto, havia cortes na testa e na face esquerda deformando o rosto moreno, empapando de sangue os cabelos pretos; o cotovelo direito estava virado para o lado errado.

— Meus homens o encontraram no lixo — contou Gaul de Tuen.

— Como ele foi parar na lata de lixo? — perguntou Joanna ao mesmo tempo em que Vivianne perguntou:

— Quem é ele?

Então Líran apontou para a porta e disse:

— Ele sabe as respostas.

Um soldado estava em pé na entrada. Não pertencia a Tuen nem a Chambert e tinha uma camada de cinzas empoeirando os cílios.

— Quem é você? — perguntou Gaul de Tuen.

— Me chamo Manó, capitão. Estou aqui sob ordens de Neville.

Até Marie interrompeu o que estava fazendo e levantou a cabeça à menção de Neville.

— Neville de Fabec? — perguntou Maurice. — Você sabe onde ele está?

— A última vez que o vi foi em Fabec — disse Manó. — Ele me deu ordens para vir a Tuen procurar a filha deste homem — apontou o eslariano desfalecido sobre a mesa.

— Pierre, — chamou Marie — segure os ombros dele. — Germon, Bojet, as pernas.

— Mas ele está inconsciente — disse Germon.

— Talvez isto o acorde. — Marie subiu na mesa, pegou o braço com o cotovelo virado ao contrário e apoiou um pé no sovaco do homem.

Um puxão, um estalo de osso, cartilagem e carne, um urro e três homens jogando seu peso contra o espasmo do Eslariano. Maurice ficou longe, segurando a boca para impedir que o café da manhã voltasse para a mesa.

— Thaila — o Eslariano gemeu e deslizou choramingando para onde não havia dor.

— É a filha dele — disse Manó. — Foi capturada por Olivier.

— Foi Olivier quem fez isto a este homem? — perguntou Vivianne.

— Eu acho que foi a mulher — disse Manó. — Desde que cheguei em Tuen não vi Olivier, mas sei que ele está dentro do palácio porque vi Thaila. Ela estava tentando se jogar pela janela da torre menor, a que fica do lado oeste. Se Thaila está aqui, Olivier está junto. Mas quem cuida das ameaças externas é a mulher. Erla.

Manó terminou de falar e se aproximou da mesa. Perguntou em voz muito baixa se o Eslariano ia morrer.

— Meu capitão não vai me perdoar — disse Manó.

— Foi você quem espancou e jogou este homem no lixo? — perguntou Marie.

— Não.

— Então não tem o que perdoar. — Ela falou de forma brusca. Não tinha tempo nem paciência para pesos na consciência de ninguém.

— Eu tenho observado o palácio à espera de uma oportunidade para resgatar a moça, mas ainda não encontrei uma abertura. Quando o Eslariano chegou, tentei prevení-lo de que tínhamos de esperar e planejar, mas acho que um pai enlouquece um pouco quando o assunto é sua filha. Ele entrou pela porta da frente.

Sobre a mesa, o Eslariano começou a soluçar. Vivianne viu as caretas que ele fez e imaginou que soluçar doía. Marie apalpava as costelas do Eslariano e balançava a cabeça de um jeito nada apaziguador.

— Não há leis nesta terra? — sussurrou o Eslariano. — Não há leis que protejam as filhas?

Cada palavra do Eslariano era um sofrimento, mas a raiva lhe deu forças além da dor.

— Na Franária as autoridades não roubam filhas, pensei. Onde estão as autoridades da Franária?

Vivianne fechou as mãos em punho. Se aqui fosse Lune! Mas não era e Vivianne não tinha poder. Ela procurou os olhos de Maurice e de Gaul, mas os dois olhavam o chão.

— Estamos aqui. — disse Pierre. Ele deixou a mochila escorregar para o chão, colocou a espada às costas e abriu a porta da Pluma. A luz do sol bateu nele e Vivianne pensou naquele momento que Pierre era muito bonito.

— Gaul — ele chamou, — Maurice.

Gaul segurou o punho da espada e colocou-se ao lado de Pierre. Maurice seguiu, assim como os dois soldados de Tuen, Germon, Bojet, até Joanna. Vivianne pegou as muletas, Coalim seguiu ao seu lado. Ela nunca tinha visto Coalim seguir ninguém. Pensando bem, ela também nunca tinha seguido ninguém.

Pierre atravessou Tuen igual a uma enchente, arrastando tudo atrás de si: velhos, crianças, mercadores, soldados. A cidade seguiu a alguns passos de distância por causa dos soldados. Havia aquele homem empoeirado com as cinzas da Boca da Guerra e foi a primeira vez que Bojet, Germon e Coalim saíram da Pluma. O sol dava a ilusão de que as peles ainda estavam a se derreter e que aqueles homens eram sombras líquidas de Pierre.

A porta do palácio de Olivierera de madeira amarela polida enfeitada com rebuscada folhagem de metal,moldura dupla de mármore azul e rosa. Uma correntinha preta tocava um sino tãolá dentro que mal se ouvia aqui de fora. Para garantir, Vivianne puxou outravez.    

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