Capítulo 56: Leonard Acidentado - Dissidentes de Debur

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Leonard decidiu tentar. Colocou-se à frente dos dissidentes e falou que se separassem em grupos. Precisavam de batedores se queriam continuar na estrada. Caçadores também e gente que se embrenhasse pelas florestas e encontrasse água. Jean era o único que havia saciado sua fome com um cadáver que encontraram na beira da estrada. Os urubus se afastaram quando ele chegou perto e só voltaram depois que ele arrancou um braço podre e seguiu caminho mastigando carniça.

A maioria das pessoas ignorou Leonard, uns riram, uma mulher cuspiu. De repente, a mulher estava no ar, gritando. Ela caiu no chão de bruços, quebrou o pulso aos pés de Jean. Ele pegou-a novamente e jogou-a para o alto. Ela esperneou e gritou, bateu no chão e quem estava perto ouviu outro osso se quebrando. Jean bateu nos cabelos dela, puxou, mordeu, jogou ela de novo para o alto. Cada vez que ela a jogava, ela subia uns cinco metros no ar e quebrava mais um pedaço de corpo no chão. Jean sacudiu a mulher pelo cangote, arrancou um pedaço da orelha dela com os dentes. Ela tentou rastejar para longe dele, mas Jean esmagou o tornozelo dela com o pé e ficou assistindo as tentativas dela de se afastar.

A mulher implorou, gritou e chorou. Jean não piscava nem ouvia: brincava. Todos ali já tinham visto cena semelhante, no começo, quando bandoleiros desavisados atacaram Jean em Debur. Ninguém imaginou que Leonard também valeria uma morte brincalhona daquelas. Durava horas. Jean jogou a mulher para o alto outra vez mas, desta vez, quando ela caiu, uma espada enferrujada atravessou o peito dela.

O caolho guardou a espada ensanguentada.

— Servi em Patire.

Leonard demorou a fazer a conexão entre Patire, Fulbert e tortura. Em Baynard se ouvia muito falar nas punições terríveis aplicadas por Fulbert e ele tentou imaginar como seria servir sob comando de um homem daqueles. O que o caolho deve ter presenciado e até sofrido. Como foi que perdeu o olho?

Dar fim à tortura daquela mulher foi a coisa menos cinzenta que Leonard viu o caolho fazer, desde que o encontrou em Debur. Jean cutucou a mulher morta com a ponta do pé, atento para ver se ela não se movia, então ele foi e se sentou aos pés de Leonard. Após alguns segundos de silêncio, Leonard repetiu tudo o que havia dito antes. Eles obedeceram. Jean se espreguiçou e arqueou as costas quando Leonard coçou o pescoço dele.

Embora mais organizados, os militares continuaram impacientes. Sentiam falta da disciplina, da rotina, de treinos que lhes dessem a ilusão de estar fazendo alguma coisa. Foi o caolho quem disse aquilo. Seguiam em direção a Tuen. Leonard tentou convencer o caolho a treinar com aqueles homens, para que fizessem alguma coisa e porque também seria muito útil ter um pequeno exército treinado ao seu lado. Leonard não sabia o que esperar de Jean, nem quanto tempo Jean continuaria com eles. Podia desaparecer tão de repente quanto havia surgido.

A única coisa que o caolho fez foi colocar sua espada enferrujada na mão de Jean. Leonard perguntou por quê e o caolho disse que espadas matam mais depressa. O homem que não era homem moveu a espada de um lado a outro, segurou-a pelo cabo e também pela lâmina. Farejou o couro gasto da empunhadura, experimentou a lâmina com a língua. Jean gostou do sabor de sangue e aço e continuou lambendo.

Encontraram um soldado na estrada, um batedor de Tuen, que perguntou quem eram e o que desejavam ali. Jean usou nele a espada do caolho. O soldado se defendeu, mas Jean era rápido demais. Cortou uma orelha, depois um dedo, depois rasgou um pedaço de braço.

— Basta — disse o caolho. — Chega de tortura.

Jean fez um corte fundo no rosto do batedor. Leonard Acidentado se aproximou de Jean. Ele viu cores no caolho recolhendo-se e sumindo que nem cabelo queimado. Cores doídas, cores torturadas. Leonard colocou a mão no braço de Jean, que inclinou a cabeça, curioso.

— Já chega — disse Leonard mansamente, fazendo cafuné atrás do homem de barba preta e bigode branco. Ele empurrou o braço de Jean para baixo com delicadeza e Jean guardou a espada, então seguiu caminho, sem se preocupar mais com o batedor de Tuen, que estava caído ao lado da estrada, tapando o rosto com as mãos.

Leonard não viu mais as cores do caolho. Foi imaginação? Depois de tantos anos ouvindo Maëlle falar sobre cores escondidas e cinzas despercebidas, Leonard decidiu que o que viu foi verdade. Por isso o caolho não liderava ninguém; por isso ele ficava à sombra de uma coisa não humana. Ele havia perdido as cores.

E Leonard? Por que seguia Jean? A pergunta chegou numa tangente e Leonard se desviou dela. Concentrou-se em outra coisa, agarrou-se à ideia de que precisava organizar os dissidentes, especialmente os soldados. Guerreiros sem ter o que fazer encontravam coisas para quebrar. Sim. Era isso o que ele precisava fazer. Os dissidentes agora o ouviam e até obedeciam, mas Leonard havia convivido tempo o bastante com Neville para saber o significado de liderança. Ele não era líder e todos os guerreiros respeitados de Debur fugiram para Fabec, atrás de Neville, que estava desaparecido.

Ninguém acreditava que ele havia morrido em Fabec. Leonard sabia que isso era mais uma questão de esperança do que de lógica, mas havia rumores de que ele havia invadido Patire e matado o príncipe Faust fora da Boca da Guerra. Por um lado, isso era heróico, magnífico; por outro, a Guerra estava solta.

E Leonard tinha um pequeno exército consigo. Impaciente, desorganizado e ansioso, mas um exército. Se a Guerra havia atravessado o Loefern até Lencon, não demoraria para chegar aqui, ainda mais sem Fabec e sem Neville.

À noite, o céu vestiu um véu de nuvens e escondeu a lua. A estrada sumiu, mas Jean não parou. Para não se perder, as pessoas seguiram as instruções de Leonard e colocaram as mãos nos ombros da pessoa à sua frente. Ninguém encostou no Caolho, em Leonard ou em Jean, mas eles enxergavam Jean na escuridão. Ele era uma distorção, uma espécie de fumaça que nunca se dissipava. Desde que não se distanciassem muito, dava para segui-lo.

De vez em quando as nuvens deixavam passar um branco rarefeito que deixava todos com jeito de fantasma. Então, surgiu uma outra luz, também rarefeita e fraca, mas quente e humana: a luz de uma cidade.

— Tuen — disse uma voz na escuridão.

Houve um breve murmúrio, não de vozes, mas de ânimos; aceleraram o passo, mas alguém disse:

— Esperem. Onde ele está?

Os dissidentes se voltaram para a luz, mas Jean foi para o lado oposto, em direção a um gigantesco bloco de escuridão sem nuvens. O castelo de Chambert. Nos portões do castelo, o grupo inteiro hesitou. Até Jean. A exaustão da estrada se somava ao desgaste da revolução, que se amontoava com o cansaço de quatrocentos anos de guerra, da perda de Neville, do medo do dragão e de Fulbert. Na noite, Chambert era apenas um bloco negro numa noite sem estrelas. Os portões estavam abertos e bafejavam escuridão sobre a estrada. Uma escuridão gelada que cheirava a chuva e papel antigo. Cheirava também ao que estava escrito no papel antigo.

A brisa que vinha de dentro do castelo mudou de consistência à aproximação dos dissidentes, como uma fera adormecida que acorda e se pergunta o que ousa perturbá-la. O corpo inteiro de Leonard formigou. Imagens como sonhos bateram feito ondas nas praias de sua mente. Ele viu a lua, mas no céu não tinha lua.

Jean atravessou os portões. Chambert não o engoliu como trevas fariam (ou ao menos com Leonard achava que trevas fariam). O castelo pareceu se colocar de lado, ainda curiososo, mas logo perdeu o interesse e voltou a dormir.

O caolho seguiu Jean para dentro do castelo gigante. Ele estendeu as mãos como que medindo a temperatura de um lago. Um a um, os dissidentes entraram, mas não foram fundo. Pararam e acamparam logo à entrada, mais próximos uns dos outros do que nas noites anteriores, mais frias do que hoje. Na noite de Chambert estava pendurado um eco, um uivo apagado de lobo mistério.

Jean desapareceu nas entranhasde Chambert. Leonard pensou sentir no chão um ronronado sonolento, que bocejoue calou aninhado no centro do castelo abandonado.    

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