As horas passaram depressa. Quando entretidos, nem mesmo somos capazes de sentir o tempo voar. Foi assim que os alunos se viram diante dos últimos trinta minutos de aula. Os dez primeiros seriam reservados para que cada um fosse capaz de concluir seus textos pacientemente; já os outros vinte, para a leitura de duas redações escolhidas ao acaso.
A maioria já tinha terminado há algum tempo, então Adina passou de mesa em mesa para recolher um por um. O silêncio se manteve, porém dava para ouvir sussurros bem baixinhos de um ou outro. Blair inclusive, que comentava algo com uma garota atrás de si. A redação dela foi escrita em terceira pessoa descrevendo a cena do dia em que ela saiu chutando as portas do asilo a procura do Kenneth Chu, o Tookie, junto da Sterling e do Bowser. O nome de todos os envolvidos foram trocados, obviamente, para que ficasse o mais impessoal possível, mas ela narrou toda a cena, dando ênfase principalmente na parte em que agrediu o foragido com uma bengala de ferro. Ficou bem criativo e bem descrito.
Quanto ao Luke, ele estava quase dormindo no próprio lugar, a cabeça tombada suavemente para a frente e os olhos piscando cansados. A ideia dele era escrever uma redação dissertativa-argumentativa sobre a importância do golfe, mas provavelmente não sabia bem o que significava um texto dissertativo, porque além de ter começado em primeira pessoa, mudou o tipo de pessoa no decorrer de todo o texto: de eu para nós, de nós para eles, de eles para eu de novo. Além disso, em vez de apresentar argumentos e teses, deu a própria opinião, como se estivesse comentando sobre o assunto com algum amigo virtual. Enfim, ficou uma bagunça, mas pelo menos ele tentou, né?
April, por sua vez, estava em silêncio em seu canto, reflexiva. Entretanto, por dentro, estava nervosa. Bastante nervosa, na verdade. Foi só quando entregou o texto para a professora que se deu conta da besteira que fez, mas não podia pedir de volta, até porque não tinha mais tempo para escrever outra. Deus do céu! Torcia fervorosamente para que a sra. Murphy não escolhesse por engano a sua redação, porque temia profundamente que percebessem que foi ela quem escreveu. Sentia o coração bater acelerado no peito. Na hora pareceu tanto a coisa certa a fazer e a ideia fluiu tão bem em sua mente conforme anotava os pensamentos no papel que nem se deu conta de que estava se assumindo secretamente. Agora parecia muito errado. Muito.
E os dez minutos se passaram. Sterling, por ter começado por último, foi quase a última a entregar, mas conseguiu criar a carta, por sorte. E ficou feliz com o resultado. Respirou fundo, repousando as costas no encosto da cadeira.
Então, com todos os textos em mãos, Adina embaralhou as folhas em sua grande mesa e, juntando-as de novo, puxou, de olhos fechados, a primeira redação que leria do meio do bolo de papel.
— Hm... Vejamos. — analisou superficialmente a escrita num primeiro momento e pôde ver, pela caligrafia, que era de uma menina. — Uma carta. Bom... Parece interessante. Querida eu do passado. — Sterling sentiu seu coração bater forte quando a sra. Murphy leu o título. Era a dela. — Vamos à leitura, então.
E limpando a garganta para se fazer entender melhor, começou:
Querida eu do passado,
Não sou muito boa com palavras, mas vou me arriscar. Já que não tenho poderes para mudar o que aconteceu, talvez eu seja capaz de lhe dar alguns conselhos, porque você vai precisar.
Primeiramente, não importa o que esteja acontecendo em sua vida agora, saiba que não é o fim do mundo. Você vai superar, acredite.
Desde criança eu sempre desejei ser capaz de viajar no tempo e assistir a minha história se desenrolar como um filme. E acredito que seja isso que eu esteja fazendo ao voltar a um passado onde tudo parecia muito fácil. Onde você era só uma garota ingênua e feliz.
Escrevo porque quero que você saiba que está tudo bem errar. Não se culpe. Você vai mentir, vai se decepcionar, vai magoar ao dizer umas verdades... Mas você vai aprender. E o aprendizado é a maior lição que você vai tirar de suas falhas. Você vai crescer, vai amadurecer e vai sentir orgulho da mulher que está se tornando, porque eu sinto. Portanto, aguenta firme! Se quer saber, estou indo bem por aqui, muito bem, só o coração que não está muito legal atualmente, mas ele vai se recuperar aos poucos. Deus é bom! Confie nEle todos os dias.
Quanto aos arrependimentos, você terá, sim. Muitos. Mas se você não tivesse feito todas as coisas das quais irá se arrepender, provavelmente não existiria eu agora, isto é, essa você do futuro. Fui forjada no calor das suas batalhas contra si mesma e você venceu a guerra, no final das contas.
Vão ter vezes em que você acreditará que é o fim do mundo, e talvez você tenha um pouco de razão. Será mesmo o fim, só que de todo aquele seu medo infantil de achar que nunca será boa o bastante e que morrerá infeliz se não tiver alguém ao lado. Você vai aprender a apreciar a sua própria companhia como nunca antes e, nesse meio tempo, vai descobrir coisas sobre você e sobre o que você gosta que te surpreenderão de uma maneira positiva. Ficar sozinha, às vezes, não é tão ruim quanto parece.
Você continuará sendo desajeitada e muito ansiosa. Emocionada demais. Mesmo assim, eu realmente gosto de você, sabe? Há uma essência incrível que emana de você e é linda a forma como você continuará se doando com todo o coração. Vai se perder nas palavras, vez ou outra, e irá se apaixonar profundamente também. Uma paixão inusitada, por sinal, que te fará bem... Mas vai doer, porque vocês não estarão na mesma sintonia ainda. E também descobrirá segredos que te deixarão extremamente balançada. Tudo isso de uma vez só. Porém você tem se mostrado incrivelmente corajosa e responsável para lidar com os seus sentimentos da melhor forma possível. Por mais que pareça difícil, você vai conseguir se manter na linha, pela graça de Deus!
O meu conselho final é que você aproveite a sua jornada. Ria bastante. Ignore os julgamentos. Seja você mesma da maneira mais autêntica que puder. Seja feliz! Os obstáculos que surgirem serão apenas para te fortalecer lá na frente. Aqui no futuro. Não que por aqui esteja tudo muito fácil, mas fica tranquila, você vai se divertir, especialmente no trabalho de meio período que você vai conseguir arranjar.
Ah! E continue indo caçar com o seu pai aos domingos e aproveite para pegar com ele as dicas de como abater bem um alvo... Você vai precisar.
Com amor,
Sua eu do futuro
— Uau! Isso foi- foi incrível! — elogiou Adina ao concluir a leitura, para a felicidade de Sterling, que esboçou um sorriso discreto. — Uma salva de palmas ao escritor.
E todos aplaudiram. Ela própria o fez também, como se o fizesse para outrem. Enquanto isso, seus olhos deslizaram sorrateiramente para a direção de April, que também aplaudia, porém parecia dispersa. Os cabelos castanhos caíam nas costas feito cascatas e ela vestia a camisa social branca de manga longa por baixo do colete de lã laranja. Sterling ficou a observá-la por um tempo até Blair virar-se para trás para falar consigo. Pela distância, não tinha como dizer muita coisa, então ela só esboçou um sorriso orgulhoso e ergueu discretamente o polegar direito em aprovação, sabendo que aquela redação era da irmã. Depois, voltou-se para frente bem a tempo de Adina voltar a falar.
— Não sei quem escreveu, mas quero que saiba que o seu eu do passado vai gostar muito do que ler, porque eu amei. Parabéns! — disse, toda satisfeita. Logo em seguida, assim que pôs o texto num canto de sua mesa, retirou mais um do bolo de papel ainda em suas mãos.
Por mais que quase todos desejassem o privilégio de ter a redação lida lá na frente, foi como se tivessem prendido a respiração em suspense e apreensão por um segundo antes de ela anunciar o próximo título.
— Hm... Pelo visto temos aqui um poeta. Ou uma poetisa. — admirou-se Adina. — Uma poesia. Uau! Vocês estão inspirados hoje, hein! Estou gostando de ver. — sorriu para si mesma, orgulhosa. — Se eu pudesse.
Ao escutar a menção ao seu título, o coração de April quase saiu pela boca. Ergueu instantaneamente os olhos em assombro e sentiu-se tremer. Merda! Qual é a probabilidade de você escrever quase uma confissão e ela ser lida na frente de todo mundo? Deus do céu! Engoliu em seco, temerosa. Petrificou no lugar.
— Certo. Vamos lá, então. — preparou-se para voltar à leitura, pigarreando.
Confiante,
Você sempre foi esse tipo de garota
E talvez tenha sido por isso que eu me apaixonei
Mesmo com todos os teus defeitos, trejeitos e manias
Beijar você àquela noite foi a melhor coisa que me aconteceu,
Só concretizou dentro de mim algo que eu já sentia,
Um segredo adormecido bem dentro do meu ser
Que se revelou à medida que eu tomei coragem de trancar a porta e ir atrás de você
Eu deveria ter ignorado o medo e não ter te abandonado
Mas percebi que ele é muito mais forte do que eu em todos os sentidos
Hoje me vejo acorrentada a ele mais uma vez
E lamento muito as coisas não terem sido como deveriam
Você merece mais
Merece tudo aquilo que há de bonito
Portanto, seja livre para ser o que quiser
Não tenha medo, eu estarei aqui torcendo por você
Enquanto vou me refazendo com as verdades que eu decidi esconder
Eu não queria ter te feito chorar
Mas eu fiz
Eu não queria ter te magoado
Mas eu magoei
E entre essas idas e vindas de querer e não querer,
Eu me perdi perdendo você
Sinto tanta falta do teu perfume,
Do teu riso,
Do teu olhar.
Você sempre foi a mais amável de todas,
E a dor de não te ter por perto me sufoca
Se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria
Só para sentir o seu beijo mais uma vez
Só para sentir a delicadeza dos seus dedos deslizando pelos meus cabelos
E dos sorrisos que você me oferecia quando os meus olhos encontravam os seus
Se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria
Só para ter mais uma chance
De segurar a sua mão tal como você tinha me pedido
Concretizar aqueles nossos planos
E te puxar para um lugar secreto e distante
Se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria
E definitivamente não abriria aquelas portas
Em vez disso, eu te puxaria para um abraço
Te envolveria em meus braços
E me desculparia por ter sido tão idiota
Espero que entenda as minhas razões
As minhas ansiedades
Os meus temores
Eu agiria diferente, se pudesse
Eu faria diferente, se pudesse
Mas como não posso, simplesmente me deixo queimar lentamente.
April só percebeu que estava segurando a respiração durante todo aquele tempo quando ouviu os alunos ao seu redor baterem palma para o texto que era seu. Havia um nó em sua garganta, um temor em seu coração. Mas o que mais a preocupava era saber o que Sterling achara daquilo. Respirou fundo algumas vezes até reunir coragem de olhar por cima de seu ombro para encontrá-la. A resposta não poderia tê-la machucado mais: a Wesley estava chorando. Um choro bastante reservado, sim, mas ainda assim um choro, e havia tristeza em seu olhar. April travou o maxilar, ressentida, culpando-se por ter mexido no que estava quieto. Mas o que podia fazer? Era para ser só uma redação como outra qualquer, embora tenha colocado sentimentos demais, só que não imaginaria que seria lido ali na frente.
— É uma pena que eu terei dificuldade para descobrir quem escreveu essa preciosidade, porque a pessoa foi bastante inteligente em escrever com letra de forma. — a professora comentou, soltando uma risada descrente. April sentiu um certo alívio dançar dentro de si com a notícia, seus ombros até relaxaram. Entretanto, ela não estava totalmente bem, porque doía. Doía não poder fazer nada para mudar aquele dilema e podia compreender o que o coração de Sterling dizia com aquelas lágrimas. — E é também uma pena que você tenha perdido a sua garota. Espero sinceramente que vocês fiquem juntos algum dia. É tudo questão de tempo. Talvez esse adeus não seja um adeus, mas um até logo. Por isso não desista, se você realmente gosta dela.
E April sentiu seus olhos marejarem. Precisou morder os lábios inferiores para suprimir o choro que estava prestes a vir. Parecia até um sinal dos céus. Primeiro foi o Alex com todo aquele discurso, depois o seu próprio coração disposto a se abrir e se confessar naquela redação e agora a sra. Murphy. Se mais alguém aparecesse dizendo alguma coisa, ela surtaria.
Logo, assim que o sinal tocou indicando o fim da aula, Stevens rapidamente ajeitou suas coisas para sair daquela sala o mais depressa possível. Jogou tudo de qualquer jeito dentro da bolsa, pendurando-a no ombro esquerdo, e contornou a cadeira para sair pelo corredor que não fosse o de Sterling. Porém, a voz familiar chamando por seu nome a fizera parar no meio do caminho no mesmo momento.
— Preciso falar com você. — a Wesley pediu enquanto se aproximava. Os outros alunos continuaram a ir embora, inclusive Blair, que entendeu a necessidade da privacidade. Luke também se foi logo, tinha treino para o golfe.
April virou-se para ela com certa relutância, o coração batendo a mil por segundos. Não conseguiu pensar em nada para dizer, em nenhuma desculpa para fugir daquela encruzilhada, não com aqueles olhos verdes molhados olhando para si com tamanha intensidade. Só não soube dizer se pendia mais para o lado positivo da situação ou para o negativo. Se fosse chutar, diria que era a segunda opção.
— O que você quer? — tentou soar indiferente, seca, com o intuito de afastá-la, mas não funcionou bem, pois sua voz vacilou sem querer, entregando a sua farsa. Então, para compensar o erro, ajeitou o ombro para trás a fim de assumir uma postura mais empoderada e ergueu suavemente a cabeça. O lado bom de ser menor que Sterling era que podia olhá-la de baixo para cima, isto é, olhar altivo. Estava em melhor posição.
— Sério mesmo? — a indagação retórica foi uma referência à atitude agressiva que Stevens tomara, como se tivessem voltado à estaca zero da relação, de volta à época em que trocavam farpas.
April respirou fundo antes de ceder pouco a pouco, a tensão foi se dissipando. Não havia necessidade de agir daquela maneira, realmente.
Varrendo depressa a sala com os olhos, Sterling percebeu que o lugar já estava vazio, por sorte, já que todos tinham tomado seus respectivos rumos. Adina fora a última a sair, saudando-as com um breve e animado "até mais, garotas". Elas responderam, ainda que não com a mesma vontade. Por fim, ficaram só as duas, exatamente como da outra vez. Pena que não para fazer a mesma coisa.
— Qual a sua intenção? — Sterling quis saber, exigente, dando início à conversa.
— Que intenção? — confusa, devolveu. Não sabia a que ela se referia.
— Primeiro você termina comigo com medo de as pessoas descobrirem sobre a gente e fica flertando com o Luke para disfarçar, depois você decide simplesmente escrever uma poesia narrando a nossa história. — seu tom de voz era frio. — De novo: qual é a sua intenção?
— Não tenho intenção nenhuma, Sterling.
Wesley concordou e uma risada sem humor lhe escapou pelo nariz. Seus braços se cruzaram sobre o peito.
— Certo.
— Eu só quis desabafar, ok? É permitido! A minha ideia era que você nunca soubesse. Era para ser algo só meu.
Silêncio longo.
— Quero que entenda que eu realmente me importo com você e que dói muito em mim também. Ou você acha que eu queria que fosse desse jeito? — questionou com pesar na voz, mas com uma sutil agressividade. Sterling respirou profundamente. — Eu preciso me curar primeiro e amadurecer, caso contrário continuarei ferindo as pessoas com quem me importo. Há muito a ser feito dentro de mim. Você não merece passar pelos meus traumas e problemas.
— Não é você quem tem que me dizer o que eu mereço e o que não! — rebateu com rispidez. — Meu coração não escolheu você por ser perfeita. Ele te aceitou e aceitou cada detalhe seu, mesmo com todas as negativas, mesmo com todos os teus defeitos.
April sentiu o corpo todo tremer, o ar até lhe escapou dos pulmões.
— Mas eu não posso te esperar para sempre. — precisou dizer. — A menos que você me dê algo a que me agarrar. As coisas não precisam ser da forma como eram, apenas boas o suficiente para nos fazer feliz. Isso por si só já seria o suficiente, não acha?
Não houve resposta.
— Não estou te pressionando a fazer nada, April, quero deixar isso bem claro. Eu só preciso de uma posição sua. A partir dela, saberei como agir. Mas me faça entender primeiro o que você realmente quer, porque a sua indecisão está me machucando!
— Eu quero você, inferno! — Stevens permitiu-se exaltar, a voz alguns oitavos mais alto que o normal, mas logo se recompôs. Engoliu em seco. — Eu gosto de você, Sterling. Gosto muito mais do que você imagina. Tudo o que eu mais queria agora era andar por essa escola com você sem me preocupar. Trancar aquela porta ali e te beijar de novo. É isso o que eu quero, mas eu não posso! Já te disse! Você não conhece o meu pai!
E abruptamente Sterling paralisou no lugar.
Meu... Pai.
Meu pai.
Com certeza ela queria ter aproveitado melhor o aroma e o gosto agradável daquelas palavras ditas com tanta intensidade. Soou tão bem aos seus ouvidos que foi até um pecado não ter tido tempo para pensar em dizer algo de volta. "Eu quero você". "Eu gosto de você". "Te beijar de novo". Isso sim era grande coisa! Muita coisa! Mas a última frase a fizera desmanchar como um castelo de cartas e trouxe de volta à lembrança uma informação que esquecera de passar para frente. Esquecera de comentar com Blair: John Stevens foi solto há uns dias e estava atrás das duas, provavelmente querendo vingança.
Sterling se sentiu zonza e fez a pior coisa que poderia ter feito naquele momento:
— Eu preciso ir. — disse, apressada.
— O qu-
Mas April não teve nem mesmo tempo de perguntar o que tinha acontecido, porque a Wesley já tinha saído correndo porta afora em busca da irmã, deixando-a para trás. Então ficou ali, parada, sem saber exatamente o que fazer. O coração na mão. A vulnerabilidade à mostra. E tudo o que desejou foi não ter escrito aquela droga de redação.