Capítulo Trinta e Dois

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Quando os primeiros raios de sol surgiram no horizonte Samuel finalmente adormeceu. A luz do dia parecia ter o poder de espantar seus fantasmas. Foi um sono sem sonhos e terrivelmente pesado.

O seu domingo foi reduzido a dormir e se martirizar silenciosamente quando estava desperto, segurava firme a palheta na mão e se lamentava pelo estrago que causou na vida alheia, mesmo sem querer. Aos poucos foi se conformando com o ódio que com certeza Toni nutria por ele.

Era segunda-feira de manhã quando finalmente saiu do quarto já pronto para trabalhar. A palheta virou o pingente num cordão de couro preto, uma mera lembrança da amizade mais verdadeira de toda sua vida. Era consciente que quando ganhou aquele objeto Toni era apaixonado por ele, o que na sua opinião só tornava o presente ainda mais valioso.

Naquela manhã estava especialmente silencioso, ainda remoendo os últimos pensamentos amargos. Otávio lhe observava com seus olhos afiados, talvez fosse o único que estivesse atento o suficiente para perceber sua mudança de comportamento, afinal era a pessoa que mais tinha contato com o músico naquela casa. Rosa e Clara tagarelavam cheias de pomposidade sobre o café da manhã, entre críticas e elogios, falavam sobre dietas e carboidratos. As duas tomavam um suco verde com partículas pretas flutuantes de arrepiar os cabelos.

Samuel quase não participou da conversa, estava se sentindo cansado e sufocado por tudo. Se limitou a tomar seu café preto e rever em pensamento seu cronograma de aulas da manhã.

- Meu filho, você vai tomar só esse café?

Samuel olhou rapidamente para tia.

- Eu estou bem, não precisa se preocupar.

- É isso toda manhã Dona Rosa, Teresinha fica maluca com a falta de apetite desse seu sobrinho - foi emendando Clara. Dando ênfase ao fato de que Samuel não comia adequadamente.

- Ah não Samuel, meu filho você tem que comer direito.

- Tia. Sábado, quando eu fui pegar os suportes das guitarras no sótão eu encontrei minha mochila velha, da época que eu morava com a minha mãe. Estava cheia de roupas minhas e outras coisas daquele tempo, não entendi porque eu nunca soube que essa mochila veio para cá na minha mudança? - foi direto ao assunto que remoeu no fim de semana todo, deixando o assunto do café esquecido.

Otávio parou de comer para ouvir com atenção a conversa que se iniciava. Rosa estreitou os olhos como se pensasse no assunto por alguns instantes.

- Quando ficou decidido que você vinha morar aqui eu preparei o seu quarto e comprei tudo novo, os móveis, as roupas, cortinas, tapetes, tudo sem exceção. Creio que a sua mãe arrumou uma bolsa quando você estava no hospital com as suas coisas, mas eu não sei se era sua mochila e não fez a menor diferença porque assim que eu cheguei pedi para a empregada levar tudo para o sótão. Eu não queria nada por perto que te fizesse lembrar daquela gente - contou normalmente, num tom um pouco mais sério.

Samuel fechou a mão com força, sentindo alguma coisa queimá-lo por dentro.

- Mas eram as minhas coisas. Não podia ter feito isso.

- Ah meu filho, eu fiz o que era melhor para você. Samuel, quando você saiu do hospital estava na cadeira de rodas e numa depressão tão profunda que nem ao menos se lembrou dessas coisas, não tinha motivos para mostra-las para você.

- O que a senhora achou que ia acontecer? Eram só roupas! - falou de maneira ríspida assustando todo mundo na mesa.

Suas mãos tremiam de raiva quando as passou no rosto, estava extremamente frustrado. Rosa abandonou suas tentativas de ser pacífica e estreitou os olhos ameaçadoramente para o sobrinho.

UnilateralWhere stories live. Discover now