Capítulo Dezenove

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Samuel estudou as feições do rapaz na sua frente, procurando algum vestígio do "demônio" ao qual todos se referiram nas histórias loucas que ouviu desde que chegou na cidade.

— As coisas aconteceram todas muito juntas. Minha vó sempre estava com a bíblia em baixo do braço, xingava os caras na rua quando percebia que eram gays e tudo o mais. Ela era velhinha, bem velhinha e toda corcundinha então era engraçado de ver ela fazendo essas coisas. Sempre disse que era pecado que era errado. Quando você sumiu da escola e disse que foi porque um cara te agarrou e veio por cima e não sei mais o que... eu achei que ele tinha mesmo te forçado ou pelo menos tentado.

Eduardo falava calmamente, sem mostrar muito envolvimento com o assunto. Toda hora buscava os olhos do músico, tentando algum sinal que estava sendo compreendido e suas justificativas aceitas, mas Samuel apenas fez sinal com a mão para que ele continuasse, muito mais frio que normalmente era com qualquer pessoa. Bem no fundo teve esperanças que tudo pudesse ter sido um mal entendido, que não foi realmente Eduardo que fez todas aquelas coisas violentas, mas ele estava apenas confirmando o que já sabia. Era decepcionante.

— Não foi uma desculpa para arrumar briga. Eu realmente achei que aquela anta tinha tentado te... levar para esse caminho — falou com mais ênfase e de maneira incisiva, tentando de qualquer maneira alcançar o coração do músico.

Samuel procurou na pessoa a sua frente algum sinal do seu vizinho barulhento que grudava nele como chiclete toda vez que se viam, mas desistiu, apenas se curvou um pouco e apoiou a testa no topo da bengala. Estava tendo as férias mais cansativas da sua vida.

— Eu não sabia que o seu pai era violento. Ele era religioso, vivia na igreja... — tentou mudar a abordagem, mas foi interrompido.

— Ele não é meu pai de verdade e depois que ele saía da igreja ia para o boteco encher a cara do outro lado da cidade — corrigiu em voz baixa, sentindo a dor de cabeça piorar, sem se quer olhar para o rapaz.

O silêncio mórbido tomou conta da sala, engolindo-os, pressionando-os.

— Eu não sabia...

— Esse é o problema das pessoas. Falam de coisas que não sabem e não entendem.

Eduardo passou a mão na nuca outra vez, aflito com o estresse crescente na voz do outro.

— Para mim vocês eram a família perfeita, o seu Mauro era o homem que eu queria ser um dia. Ele parecia normal para gente que estava de fora, quando eu soube o que aconteceu com você... eu pensei que ele tinha descoberto sobre o tal do beijo e como minha avó também achasse uma abominação e acabou passando dos limite, quer dizer, isso é muito comum, um pai perder o controle quando percebe algo assim e... eu realmente achei que tinha sido culpa do Toni.

Samuel riu no meio da desgraça que parecia querer rodeá-lo por todos os lados, fazendo o rapaz se calar, talvez pensando que estivesse louco.

— Aquele foi o meu primeiro beijo sabia? — revelou sorrindo com amargura, ainda de cabeça baixa, lembrando que na época teve vergonha de admitir isso, se sentindo ridículo agora por algo tão bobo.

Eduardo ficou em silêncio por alguns instantes, absorvendo a informação.

— Não, eu não sabia — admitiu, muito sem graça — Você... é gay também? — questionou com cautela.

Samuel sentiu uma revolta nova surgir no seu interior, algo indignado. Levantou a cabeça e encarou o rapaz com raiva.

— Não é da tua conta. Ou vai me bater também?

— Para com isso Samuel! Caramba! Foi um erro tá bom! Eu achei que estava te vingando! Eu só... queria que o seu pai... ou padrasto nunca tivesse feito aquilo! Os teus gritos foram ouvidos na rua toda, tem noção disso? Eu... só... — rebateu exaltado, era evidente como o flagrante de Mauro havia mexido com o rapaz.

UnilateralWhere stories live. Discover now