Capítulo Vinte e Nove

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Quando abriu os olhos, despertando do seu sono agitado viu que ainda estava escuro.

Samuel passou a mão trêmula no rosto e tentou se acalmar. Estava coberto de suor. Seus pesadelos estavam piorando cada vez mais, eram tão reais e assustadores que o faziam despertar no meio da noite muitas vezes, só essa noite era a segunda.

Conferiu as horas no celular que estava no criado mudo, já passava um pouco das quatro da manhã. Levantou, tomando o cuidado de não apoiar a perna direita, alcançou a órtese e colocou por cima da calça de algodão que usava para dormir. Só então pode ficar em pé direito, há dois dias o joelho operado não doía e não queria correr riscos desnecessários apesar de achar a órtese terrivelmente desconfortável.

Atravessou a casa escura normalmente, tomou um pouco de água na cozinha e voltou para o quarto e sentou na poltrona de couro perto da janela enorme, cansado demais para fazer qualquer coisa mas ao mesmo tempo desperto demais para tentar dormir outra vez, suspirou. Assim viu o dia amanhecer ouvindo música para espantar seus fantasmas.

Estava entregue num cochilo cansado quando ouviu o despertador do celular tocar e abriu os olhos assustado.

Tomou banho sem pressa, sentindo a água quente aliviar as dores dos músculos que se contraiam em protesto por ter dormido de mal jeito na poltrona outra vez. Estava exausto e ainda nem eram sete horas da manhã.

Quando saiu do banho estava se sentindo minimamente melhor, se enxugou e foi vestindo as roupas, já estava pegando a camisa regata branca que usava por baixo de tudo, como uma segunda pele, quando percebeu que estava de lado para o espelho do guarda roupa. Num impulso estranho se aproximou do objeto, olhando o próprio reflexo, fazia muito tempo que não se olhava no espelho.

A calça social preta lhe caía bem, os músculos sutilmente definidos no corpo esguio era até harmonioso, mas tinha aquele risco reto e rosado na lateral esquerda, seguindo as costelas. Fazia tantos anos que tinha rasgado a pele e a marca nunca sumiu.

Na verdade tinha esquecido como tinha adquirido essa marca, mas a memória voltou junto com as outras. Uma vez que Mauro chegou bêbado acabou discutindo com Violeta e tentou agredir a esposa. Naquela época o medo ainda não tinha dominado seu espírito por completo e Samuel saiu em defesa da mãe, Mauro o jogou de encontro a mesa de vidro da cozinha, a quina estava "lascada" há muito tempo e caiu arrastando as costelas ali, tinha uns onze ou doze anos nessa época.

Virou um pouco de lado e vislumbrou a ponta das cicatrizes que se amontoavam nas suas costa, fechou os olhos por dois segundos se concentrando. Detestava aquelas marcas. Odiava o próprio corpo. Vestiu a camiseta rapidamente e foi colocando a camisa social e pendurando a gravata listrada em tons de cinza no pescoço. Se repreendendo em pensamento, não devia ficar remoendo essas coisas do passado, nada as modificaria afinal.

Já saiu do quarto pronto para dar aulas, com o terno preto cobrindo e escondendo cada uma das suas cicatrizes físicas e emocionais. Era como vestir uma fantasia.

— Bom dia Terezinha — cumprimentou cordialmente a cozinheira que trabalhava na casa desde que veio morar com sua tia.

— Bom dia Samuelzinho. Nossa mas hoje você tá um pedaço de mal caminho hein! — brincou, colocando um bolo redondo com um furo no meio em cima da mesa.

— São os seus olhos — brincou já sentando.

— Que nada filho, você tá lindo de morrer mesmo.

— Quem mais vai comer hoje aqui Terezinha? — questionou vendo a variedade de coisas dispostas na mesa.

Tinha bolo, pães, frutas, torrada integral, dois sucos diferentes, café, chá, leite e por aí vai.

UnilateralWhere stories live. Discover now