Camila POV
Não tive pressa para caminhar até o carro da minha mãe. Andei devagar, ainda com meus fones, visando poder prolongar aquele momento para sempre. Onde eu não estivesse entrando em um carro para em encaminhar para um lugar que me deixaria aterrorizada. Eu sabia que a decisão de procurar tratamento foi minha e que, com toda a certeza do mundo, eu poderia desistir a hora que eu quisesse. Mas não importava quantas vezes eu olhasse para trás em tudo o que eu já fiz na minha vida, eu sempre me via desistindo de alguma coisa. Fraquejando. Fracassando.
E eu me recusava a continuar sendo assim.
Conforme eu me aproximava, a porta do carro de minha mãe foi aberta para mim e tudo o que eu fiz foi entrar e fechá-la. Lauren estava do meu lado e sorriu para mim quando eu entrei. Minha mãe olhou para trás para poder me ver.
- Querida, como foi na escola nova? – Perguntou minha mãe.
- Bem. – Falei encarando o banco vazio a minha frente do passageiro. Era a primeira vez em toda a minha vida que eu chegava da escola dizendo que foi tudo bem e realmente havia sido. Nenhum tormento, nenhum tumulto. Não tive nenhum pânico – além do normal –, não peguei ninguém olhando para mim como se eu fosse um alienígena. É, havia corrido tudo bem.
- Bem mesmo? – Lauren perguntou pegando minha mão. Alternei meu olhar entre Lauren e minha mãe. Então eu sorri.
- Sim, bem. As pessoas aqui são mais... Educadas. – Suspirei.
- São? – Minha mãe perguntou.
- São. Pra vocês terem uma noção, uma menina até pegou minha caneta que caiu no chão hoje. E quando eu não disse nada, ela não... Falou nada de ruim. – O que era verdade. Ela realmente não fez coisa alguma.
- Que ótimo. – Minha mãe sorriu. – Fico feliz que esteja se adaptando bem nessa escola. – Abaixei a cabeça. Não ligava mais muito para o que aconteceu hoje e sim para o que aconteceria dali a alguns minutos. – Então nós vamos. Está pronta? – Assenti de leve e minha mãe se virou para dar partida no carro.
Lauren pegou minha mão entre as suas e a beijou suavemente, dando um sorriso reconfortante para mim em seguida. Deixei a cabeça em seu ombro e tudo o que eu pude fazer foi desejar que eu não estivesse indo para onde estava indo, que eu não tivesse que lidar com aquilo agora. Mas eu não podia escolher, então apenas fechei os olhos e tentei relaxar o máximo possível, não precisava ficar nervosa antes da hora, era desnecessário.
Mas eu estava. Não conseguia controlar isso.
- Ei... Tudo bem? – Lauren perguntou baixo de um jeito que só eu escutei.
- Não. – Fui sincera e escondi o rosto na curva de seu pescoço. Lauren afagava meus cabelos e ficamos dessa forma até que minha mãe estacionasse em frente ao consultório do Dr. Halphins.
- Chegamos. – Minha mãe anunciou e desceu do carro. Com um pouquinho de custo eu também desci do mesmo, seguida por Lauren, que fechou a porta.
Entramos na pequena recepção do lugar e eu apertei o braço de Lauren quase que instantaneamente, havia uma menininha gritando por algum motivo no colo da mãe. Prendi a respiração e quis sair correndo no mesmo instante, eu não podia suportar aqueles gritos. Havia uma outra criança e sua mãe, essa parecia ter algum problema que eu não consegui identificar qual, mas se balançava para trás e para frente incessantemente. Desviei o olhar quando a mãe me encarou e olhei para o chão, tentando distanciar minha mente daqueles gritos horríveis.
- Calma. – Lauren falou baixo, enquanto nos sentávamos o mais distante possível da criança gritando. – Ela não vai fazer nada com você, tudo bem? – Encarei o chão. Podia sentir que meus olhos estava arregalados e eu começava a suar frio. Torcia minhas mãos incessantemente umas contra as outras, diabos, eu precisava sair correndo dali o mais rápido possível. – Princesa. Princesa, olhe para mim. – Levantei meu olhar até encontrar o rosto de Lauren, desesperada por algum tipo de distração daqueles gritos. – Tá tudo bem, amor. Ninguém vai machucar você, tá bom? Você não precisa ficar com medo.
Tapei os ouvidos. Era a melhor solução. Ainda escutava os gritos ao longe, mas estava longe de mim – pelo menos a meu ver. Minha mãe logo se sentou ao meu lado, li em seus lábios ela falar algo sobre faltar pouco para o Dr. Halphins me chamar. De certa forma, eu fiquei feliz com isso. Sair de perto daqueles gritos era tudo o que eu queria no momento.
Acontece que, aos poucos, a mãe conseguiu acalmar a criança e a recepção ficou silenciosa, como sempre deveria ter sido. Eu tirei as mãos dos ouvidos e respirei fundo algumas vezes. Sentia Lauren fazer um carinho circular em minhas costas e isso me deixava mais calma, meus batimentos cardíacos estavam voltando ao normal aos poucos.
Então a única porta que havia naquela sala – além da porta de saída – se abriu e um homem alto e grisalho, vestindo um jaleco branco apareceu segurando uma prancheta. Abaixei a cabeça no mesmo segundo.
- Camila. – Ele chamou e eu senti minha respiração falha enquanto minha mãe se levantava
- Vem, filha. – Ela chamou, já de pé e eu comecei a me levantar, mas Lauren me puxou para sentar no último segundo.
- Se você quiser sair correndo e nunca mais voltar, eu to aqui fora e te levo pra onde você quiser. – Sussurrou em meu ouvido e eu só consegui dar um pequeno sorriso enquanto voltava a me levantar.
Caminhei contra a minha vontade para o consultório. Minha mãe segurava a minha mão com força, como se soubesse que eu estava prestes a sair correndo daquele lugar. Eu encarando chão branco a minha frente, não querendo tomar consciência do Dr. Halphins nos cumprimentando e dizendo que poderíamos sentar.
"Já vai acabar, já vai acabar". Repetia mentalmente para mim mesma, enquanto minha mãe falava todo o histórico da minha doença para o Dr. Halphins, que escutava tudo com atenção. Não levantei o olhar em momento algum, sequer vi o rosto daquele médico. Sentir seu olhar sobre mim já era suficientemente ruim.
Também não queria escutar o que minha mãe dizia. Era tudo o que eu já tinha vivido desde que nasci, toda a exclusão e vergonha a qual passei minha vida toda. Eu não precisava escutar isso, só me deixaria com mais vergonha e ódio de mim mesma. E isso era a última coisa que eu precisava.
Não percebi, mas minhas mãos tremiam. Sentia que poderia começar a chorar a qualquer momento. Me sentia péssima. Não que eu tivesse vergonha por estar indo procurar ajuda, eu sabia que isso era necessário. Mas eu sentia vergonha de mim. De ser quem eu sou hoje, de nunca ter me interessado em tentar melhorar. Vergonha de me sentir confortável sendo anormal. Vergonha de quem em era e de todo o nada que eu havia feito para melhorar. Vergonha de não sentir falta de ser normal. Porque sim, eu sentia. Mas era diferente. Eu só sentia falta de ser normal por causa da maldade das pessoas que ficavam rindo e falando coisas horrendas de mim. Na verdade, eu sentia nojo da maioria das pessoas normais.
E eu nunca iria querer ser como eles.
- Então, pelo o que eu vejo, ela não fez nenhum progresso nesses últimos anos? – Dr. Halphins perguntou. Eu escutava as teclas do computador sendo batidas. Ele estava anotando alguma coisa.
- Não. – Minha mãe respondeu. – Mas sabe, nos últimos meses... Ela vem... Tentando. – O barulho das teclas parou. Fiquei feliz com isso, aquele som repetitivo estava me dando nos nervos.
- Pode me contar mais sobre isso, Dona Sinu? – Dr. Halphins indagou.
- Tem essa menina, filha de uma... Amiga minha, ela foi morar lá em casa há uns meses. Sabe, por causa de faculdade e tudo mais. E ela sempre foi muito gentil e simpática, até que ela e a Camila são grandes amigas hoje em dia. – Minha mãe explicou e eu sabia que mentalmente ela estava acrescentando um "amigas até demais".
- Hm, isso é interessante. – Ele digitou mais algumas coisas. – Devido a tudo o que a senhora me contou, e ao histórico de Camila aqui, eu acho que posso recomendar para ela um novo tipo de tratamento. – Deus.
- E como isso funciona?
-Bom, pode parecer um pouco estranho, mas tem feito bastante efeito nos últimos anos. É bem recente, mas os pacientes que lá frequentam tem uma melhora consideradamente boa. – Dr. Halphins limpou a garganta. – É uma clínica que trata deficientes mentais de uma forma geral. Lá nós temos autistas, esquizofrênicos, pessoas com os mais variados tipos de síndrome e etc. Claro que é tudo muito seguro, nós classificamos os pacientes pelo quanto agressivos eles podem ser, para que ninguém se machuque.
- Fica todo o mundo junto?
- Sim. Temos enfermeiras lá, psicólogos, pedopsiquiatras e médicos, para atendermos a todos. O diferencial é que tentamos enturmar os pacientes, cada um com o seu tipo de deficiência e é incrível ver como eles próprios ajudam uns aos outros com suas dificuldades. Claro que o acompanhamento médico é durante todas as sessões de tratamento e temos enfermeiras lá o tempo todo, para caso aconteça algum incidente. Mas eles são bem raros e o tratamento é bastante eficaz. Eu posso lhe encaminhar para lá, para fazer uma espécie de visita, sem compromisso algum. E se você não gostar, pode voltar aqui e prosseguimos com o tratamento normal. – Ele fez uma pausa e continuou falando. – Só indiquei este tratamento para a sua filha, porque eu creio que o maior problema dela é a comunicação com pessoas estranhas, correto? Então, eu acho que na clínica ela se daria muito bem, ajudaria com o problema dela e ela poderia ajudar as outras pessoas, se quisesse e pudesse.
- Olha, eu acho que é uma boa ideia. Quer dizer, não custa nada experimentar. – Minha mãe deu de ombros. Ainda não sabia como me sentia sobre essa história toda.
- Sim. E o mais importante a senhora já vem fazendo durante todos esses anos. O aprendizado e a educação são extremamente importantes nesses casos. Camila foi criada com uma educação normal, tanto em casa quanto na escola e o fato dela sempre se sair bem nas provas, já é um ótimo resultado. Porque a maioria das mães colocam os filhos em escolas especiais quando eles tem Síndrome de Asperger. Isso só retarda e atrapalha as crianças, mas nem todo o mundo sabe disso. A capacidade de aprender é completamente normal, só precisa ser aprimorada e desenvolvida. Camila é muito inteligente, pelo que eu pude ver aqui. Tenho certeza de que ela vai se dar muito bem. – Com o canto do olho, o vi estender um papel para a minha mãe. – Aqui, o endereço e o telefone da clínica. A senhora pode ligar caso tenha alguma dúvida e ver quando vocês podem visitar lá.
- Muito obrigada, Dr. Halphins. De verdade. – Ele disse alguma coisa a qual eu não me importei e levantei minhas pernas trêmulas para sair do local. Minha mãe pegou minha mão e logo estávamos deixando aquele consultório o qual eu sentia tanto pavor.
Deus, finalmente tinha acabado.
- Foi tudo bem? – Escutei a voz de Lauren perto de nós e em seguida ela envolveu meus ombros com o braço. Me encolhi.
- Foi sim. – Não entendi porque senti um sorriso na voz de minha mãe. Ela estava feliz? Orgulhosa de mim por não ter saído correndo nem nada do tipo?
- O que o Dr. Halphins disse? – Lauren perguntou enquanto entrávamos no carro. Eu ainda estava tremendo. Só queria deitar e dormir, me sentia cansada. Tanto esforço para manter minhas pernas no lugar me deixaram cansada.
Escutei minha mãe repetir quase tudo o que o médico disse em sua sala. Sobre a clínica, sobre a forma de tratamento lá. Não queria pensar naquilo naquele momento. Não queria me imaginar indo até aquela clínica, não queria pensarem nada disso. Só queria esquecer tudo o que aconteceu hoje e me sentir aliviada por ter aguentado até o final uma longa conversa sobre o quanto eu era anormal e o que poderia ser feito para que isso mudasse.
- Você está se sentindo bem? – Lauren perguntou baixo, enquanto minha mãe dirigia para me deixar em casa.
- Sim, estou. – Respondi baixo e desejei que Lauren não tivesse que ir trabalhar hoje e pudesse passar o resto do dia comigo. Como aparentemente isso era pedir demais, ela só chegaria em casa depois da hora da janta.
- Ei. – Lauren chamou e eu levantei o rosto para olhá-la. – Eu to orgulhosa de você.
- Eu também. – Minha mãe disse do banco da frente e eu sorri sozinha, me aconchegando em Lauren. Pelo menos valeu de alguma coisa. Elas estavam orgulhosas e eu não decepcionei ninguém hoje.
Não havia sido um dia tão ruim, afinal.