Cocteau Twins - Beatrix
Não costumo ter muita certeza do que meus desenhos se tornarão quando começo a criá-los, eles simplesmente aparecem sozinhos em minha mente quando faço menção de apanhar meu conjunto de lápis, alguns esfuminhos e meu Moleskine – um presente de aniversário de minha mãe. É um dos aspectos que torna desenhar uma atividade tão relaxante e, ao mesmo tempo, um tanto quanto assombrosa.
Desta vez é diferente e ainda mais assombroso.
Traço cuidadosamente o contorno sinuoso de um par de sobrancelhas irregulares. Esfumaço as maçãs do rosto com a ponta do polegar esquerdo, imprimindo profundidade. Componho a linha fina do queixo, a faixa voluptuosa do lábio inferior, as formas ligeiramente rechonchudas das bochechas, muito embora sejam os olhos o elemento que mais tome meu tempo .
Por alguma razão, não importa quantas vezes eu tente, eles nunca parecem profundos o suficiente, pois de alguma forma há uma mensagem indiscernível que eu quero que estes olhos passem. A cada minuto, contudo, esta revela ser uma tarefa cada vez mais complicada, para não dizer confusa.
Quando finalmente consigo arrancar uma expressão satisfatória de minhas mãos doloridas, percebo o que minha mais recente obra se tornou – uma garota, mais ou menos de minha idade, com uma vasta cabeleira cacheada e um vestido negro que recobre delicadamente toda a extensão de seus braços levantados como que em posição de voo, algo paradoxal em comparação à pouca idade que aparenta ter; seus olhos, pequenos como sementes, encaram-me de forma enigmática, como que desafiando-me. Seus lábios abrem-se em um sorriso malicioso e alguma coisa nela faz com que eu me lembre de um corvo.
Ela não me é estranha. Ainda assim, é uma estranha completa.
Engulo em seco e fecho o caderno, profundamente assustada com minha própria criação.
Por Deus, Cecília, quando foi que você arranjou um senso estético tão mórbido?
Minhas mãos estão completamente sujas de grafite quando a campa soa, anunciando intervalo.
– Desenhando de novo, moça? – indaga uma voz por trás de mim, seguida de um tapinha nas costas – Bem... com as notas que você tem, até eu ficaria assim no meio da aula.
Viro-me para o rapaz esguio de cabelos espetados e óculos fundo de garrafa, dando-lhe uma leve cotovelada nas costelas.
– Perdi muita coisa, Leo?
Ele dá de ombros.
– Hoje era só revisão. Deus sabe o quanto eu já tô de saco cheio de ouvir falar em Romantismo – Leo põe as mãos nos bolsos – Mas... parece que essa é a sua escola favorita.
Faço uma careta.
– Passou longe – respondo – Estou mais pra Realismo.
Saímos da sala e caminhamos pelo pátio apinhado de alunos.
– Você sabe, em outras circunstâncias, a Ana ficaria boladona contigo.
Rio sem humor.
– Ao que parece, Leo, todos os professores resolveram pegar leve comigo – respondo secamente.
Leo suspira.
– Você sabe o porquê.
– Se isso que você insinua fosse verdade, todo mundo ficaria de bobeira em todas as aulas.
– Sabe o que quero dizer – ele insiste – Ceci, todo mundo no Segundo Ano sabia que você e Alice eram inseparáveis.
O peito aperta e engulo em seco, tentando disfarçar o fato de que já não ouvia seu nome em voz alta há tempos. Talvez isso signifique que o caso já não mais se trata de um tabu por aqui, que todos estão aceitando os fatos – sejam eles quais forem – aos poucos. Diante das emoções conflitantes que a simples menção de seu nome me provoca, não sei se isso é bom ou ruim, talvez os dois. Ainda estou naquela fase de ignorá-las enquanto ainda for possível.
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A Garota que Nunca Existiu
FanfictionEm um esquecido subúrbio na zona norte do Rio de Janeiro, Alice, uma fã fervorosa da franquia The Legend of Zelda, desaparece sem deixar rastros. Embora esteja ciente de que vive em uma cidade em que casos como este não passam de páginas de jornais...