Capítulo 2 - Bronzes e Cristais

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Cocteau Twins - Beatrix

Não costumo ter muita certeza do que meus desenhos se tornarão quando começo a criá-los, eles simplesmente aparecem sozinhos em minha mente quando faço menção de apanhar meu conjunto de lápis, alguns esfuminhos e meu Moleskine – um presente de aniversário de minha mãe. É um dos aspectos que torna desenhar uma atividade tão relaxante e, ao mesmo tempo, um tanto quanto assombrosa.

Desta vez é diferente e ainda mais assombroso.

Traço cuidadosamente o contorno sinuoso de um par de sobrancelhas irregulares. Esfumaço as maçãs do rosto com a ponta do polegar esquerdo, imprimindo profundidade. Componho a linha fina do queixo, a faixa voluptuosa do lábio inferior, as formas ligeiramente rechonchudas das bochechas, muito embora sejam os olhos o elemento que mais tome meu tempo .

Por alguma razão, não importa quantas vezes eu tente, eles nunca parecem profundos o suficiente, pois de alguma forma há uma mensagem indiscernível que eu quero que estes olhos passem. A cada minuto, contudo, esta revela ser uma tarefa cada vez mais complicada, para não dizer confusa.

Quando finalmente consigo arrancar uma expressão satisfatória de minhas mãos doloridas, percebo o que minha mais recente obra se tornou – uma garota, mais ou menos de minha idade, com uma vasta cabeleira cacheada e um vestido negro que recobre delicadamente toda a extensão de seus braços levantados como que em posição de voo, algo paradoxal em comparação à pouca idade que aparenta ter; seus olhos, pequenos como sementes, encaram-me de forma enigmática, como que desafiando-me. Seus lábios abrem-se em um sorriso malicioso e alguma coisa nela faz com que eu me lembre de um corvo.

Ela não me é estranha. Ainda assim, é uma estranha completa.

Engulo em seco e fecho o caderno, profundamente assustada com minha própria criação.

Por Deus, Cecília, quando foi que você arranjou um senso estético tão mórbido?

Minhas mãos estão completamente sujas de grafite quando a campa soa, anunciando intervalo.

– Desenhando de novo, moça? – indaga uma voz por trás de mim, seguida de um tapinha nas costas – Bem... com as notas que você tem, até eu ficaria assim no meio da aula.

Viro-me para o rapaz esguio de cabelos espetados e óculos fundo de garrafa, dando-lhe uma leve cotovelada nas costelas.

– Perdi muita coisa, Leo?

Ele dá de ombros.

– Hoje era só revisão. Deus sabe o quanto eu já tô de saco cheio de ouvir falar em Romantismo – Leo põe as mãos nos bolsos – Mas... parece que essa é a sua escola favorita.

Faço uma careta.

– Passou longe – respondo – Estou mais pra Realismo.

Saímos da sala e caminhamos pelo pátio apinhado de alunos.

– Você sabe, em outras circunstâncias, a Ana ficaria boladona contigo.

Rio sem humor.

– Ao que parece, Leo, todos os professores resolveram pegar leve comigo – respondo secamente.

Leo suspira.

– Você sabe o porquê.

– Se isso que você insinua fosse verdade, todo mundo ficaria de bobeira em todas as aulas.

– Sabe o que quero dizer – ele insiste – Ceci, todo mundo no Segundo Ano sabia que você e Alice eram inseparáveis.

O peito aperta e engulo em seco, tentando disfarçar o fato de que já não ouvia seu nome em voz alta há tempos. Talvez isso signifique que o caso já não mais se trata de um tabu por aqui, que todos estão aceitando os fatos – sejam eles quais forem – aos poucos. Diante das emoções conflitantes que a simples menção de seu nome me provoca, não sei se isso é bom ou ruim, talvez os dois. Ainda estou naquela fase de ignorá-las enquanto ainda for possível.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora