Capítulo 31 - Refúgio

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Procuro não raciocinar demais enquanto tento retirar os nervos de um coelho que acabei de abater. É até previsível que eu falhe miseravelmente em ambas as tarefas.

Derrotar o último monstro escondido nas entranhas do templo se revelou ser uma tarefa muito menos dificultosa do que parecia a princípio. Com a dobradura escondida em meu bolso como uma ferida aberta, encontrei Link e Navi no centro de um gigantesco salão no subsolo e evitei pensar no que me aconteceria mais tarde tão cedo o monstro se ergueu por trás da miríade de quadros e espelhos que cobriam as paredes do lugar como uma galeria abandonada. A luta se arrastou freneticamente por horas e, não pela primeira vez, indaguei o quanto daquela tensão eu ainda seria capaz de aguentar.

Talvez desta vez eu pudesse afirmar que subestimei minha própria resiliência.

Tratava-se de uma criatura esquelética muito similar àquelas descritas por Navi, embora uma armadura muito mais arrojada revestisse seu corpo inteiro, montado em um gigantesco cavalo negro igualmente coberto. Corríamos perdidos pelo salão oval tentando alcançar o monstro a transitar por entre as pinturas como se fizesse parte delas, cavalgando no ar e soltando descargas elétricas através de seu bastão metálico entre um quadro e outro. Sem meu arco, não tive outra escolha senão arremessar as adagas escondidas nas mangas por todos os lados, sentindo-me idiota e impotente com os braços queimando de dor, enquanto Link gastava minhas melhores flechas tentando acertar o alvo, igualmente sem sucesso.

Quando o bicho finalmente desapareceu, outra daquelas luzes fortes me cegou, transportando-nos para algum lugar. Tateando em pânico pelo nada, só pude ouvir as vozes de Navi e Link conversando com uma voz aguda e infantil. Uma garotinha.

– Mas eu sempre serei sua amiga... – sussurrou –  Nunca se esqueça disso.

Naquele momento, eu poderia jurar ter ouvido um soluço. Não meu ou de Navi, tampouco da voz.

Quando pude ver novamente, estávamos na entrada do labirinto, onde havíamos deixado os cavalos na noite anterior ao templo. Pelo canto do olho, vi que o rapaz e a fada ainda se recuperavam do estupor. Foi quando todas as possibilidades me atacaram em um átimo de segundo.

Eu havia me descontrolado.

Jane havia emergido, talvez tentasse de novo.

Link tem todos os motivos do mundo para ir às vias de fato desta vez.

Navi provavelmente não tentaria nada para me salvar depois do que havia visto.

Nunca me senti tão só como naquele momento. O tempo diminuía, e com ele, as escolhas. Não havia Impa ou qualquer outra pessoa para me proteger das circunstâncias e, por mais que tentasse, não conseguia encontrar dentro de mim a disposição para enfrentá-las. Eu já estava cansada demais.

Contrariando as expectativas, corri para longe do labirinto até a floresta. Em silêncio, prometi a mim mesma que aquela seria a última vez que eu fugiria, se é que aquela prisão sem muros junto a Helena me ensinara alguma coisa a duras penas. Não, convenci-me. Só preciso de um tempo pra absorver tudo isso, esfriar a cabeça e, só depois, dar a cara a tapa.

Quisera eu ser tão crédula quanto sou boa mentirosa.

Pensar... eviscerar... não é tudo a mesma coisa?

Não sou boa nessas coisas de caça. Sequer teria como ser, passando a vida inteira na cidade. Lágrimas caem enquanto remexo nos órgãos da vítima de minha inexperiência e luto contra o ímpeto de sussurrar para mim que esta é apenas uma parte de um pesadelo que logo vai acabar, mas canso-me pouco a pouco de ouvir minha própria voz em minha cabeça. É frustrante. Alienante, até.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora