Capítulo 16 - Conatus

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Temo meu próprio reflexo.

Temo a mim mesma mais do que qualquer outra coisa.

Mesmo perdida em algum recanto obscuro de minha consciência, Helena e as Twinrova ainda são capazes de me assombrar. O corpo em que habito é um organismo que já não me aceita e quer me eliminar.

O tempo passa, e apenas com ele consigo admitir para mim mesma, a contragosto, que o falso abandono a que tentei me entregar ocultava uma verdade que eu temia descobrir, mais cedo ou mais tarde: quero continuar viva, afinal.

Impa sabe disso, sempre soube. Nada escapa da perspicácia fria de seus olhos. Em meio às dúvidas, ela engatilha em mim a gradativa certeza de que ainda sou capaz de lutar por minha existência. Como ela pode afirmar que morrerei com tanta certeza? Eu nem sabia que ainda era capaz de me perguntar esse tipo de coisa. Talvez eu queira, de fato, viver.

Mas indagar não me levará a lugar algum. 

Quando ela permite minha permanência em sua casa em Kakariko Village pelo tempo que seja necessário, não titubeio.

Não demora muito tempo para que eu sinta os efeitos: a dor de cabeça constante, que nunca realmente passara desde que Helena me abandonara, torna-se insuportável. A diferença é que não há para onde escapar desta vez – nenhum desmaio ou inconsciência súbita, nenhum delírio bizarro intercalado por intervalos de vigília incoerente, apenas a dor pura e simples, real e palpável, uma náusea desgraçadamente lenta em minhas entranhas. 

Não sei o que devo fazer ali, em meio àquelas pessoas desconhecidas em uma morada que não é minha. Pacientemente, contudo, Impa leva-me até os fundos da casa. Vomito tudo o que não comi naquela semana sob o controle de Helena, lágrimas de vergonha e dor misturando-se à bile despejada sem cerimônia sobre a terra batida. Cerro as unhas sobre meus braços e volto minhas costas doloridas para a porta. Aquela situação já era perturbadora e deplorável o suficiente sem que houvesse quem me observasse.

– Alguém mais... viu isso? – O murmúrio quase morre na garganta áspera. Passo a língua sobre os lábios ressecados e o gosto de sangue ainda está lá.

– Se está perguntando por Link, ele saiu faz algumas horas – responde. Não há pena ou condescendência em sua voz, algo que me conforta – Foi buscar suprimentos para a missão que logo terá de cumprir.

Salvar Hyrule...

– Não deixarei que ele lhe faça nada, tenha certeza disso – diz, como que respondendo à pergunta que faço através do silêncio.

Quase que involuntariamente, deixo escapar um suspiro de alívio. 

A sensação dura pouco. Fito a bile ainda quente no chão, e outra pontada dolorosa agrava a base do crânio.

– Por que...?

– É isto o que acontece quando você utiliza seu poder e a tendência é piorar a cada dia, Cecília. Entende agora o que quero dizer?

Assinto. 

– Dói.

Ainda de costas para a porta, ouço passos se aproximarem, seguidos de uma mão calejada estendendo um pedaço de pano velho. Aceito-o, relutante, e limpo o rosto.

– Eu sei – suspira – Venha.

– Mas e quanto ao... – digo, apontando para a sujeira.

– Isso não importa agora –  responde bruscamente – Se não fizermos nada pelas próximas horas, esta é a última coisa com que terá de se preocupar, Cecília. 

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora