– Não – sussurro – Não, não é você. Isso é tudo um sonho. Posso sair daqui quando eu quiser.
Seu sorriso se alarga.
– Então por que não sai? – ela joga a cabeça para trás, o pescoço e os ombros repletos de marcas, algumas cicatrizadas, outras ainda abertas – Por que não quebra essa porta e foge daqui logo de uma vez?
Ainda com o grampo em mãos, forço a porta até enroscar as bifurcações e abri-la com as mãos frias e grudentas de suor escorregando pela maçaneta, apenas para me deparar com outra porta bem na minha frente, idêntica à primeira que, depois de aberta, solta-se de suas dobradiças enferrujadas e esfacela no chão, consumida por cupins. Com o coração martelando contra os ossos, repito o ato diversas vezes, alcançando o mesmo resultado em todas elas.
Os bichos se amontoam sobre o corpo de Helena.
Meu corpo.
– Deixa de ser covarde – o riso persiste em sua boca rasgada – Por que não aproveitamos a companhia uma da outra?
Abafo sua voz com o som de meus punhos contra a madeira apodrecida. Deslizo as unhas roídas pela superfície arranhada, sucumbindo. Não, isso não é real. Não é, não é, não é.
– Continue mentindo para si mesma, fugindo, se assim prefere. Você sempre foi boa nisso, não é mesmo? Foi como eu nasci, em primeiro lugar – Suas palavras escorrem perniciosas por meus ouvidos. Encostando a testa sobre uma das reentrâncias da porta, cubro-os com as mãos.
– Cala a boca, cala a boca, cala a boca! – começo, primeiro como um sussurro quase inaudível até berros rasgando as cordas vocais ressecadas. Repito até que as palavras percam o significado e virem expressões vazias, até que os gritos estejam embargados com o soluço do meu choro.
Por que, por que, por que?
Tirem-me daqui.
Tirem-me daqui!
Fecho os olhos e finjo, a última coisa que me resta. Finjo que estou mesmo em casa, que este é o meu quarto, que me tranquei por dentro após uma briga com mamãe e que logo Edgar virá até aqui, o som de suas chinelas chapinhando pelos corredores do apartamento, seguidos de batidas quietas na porta. Ouço-as agora mesmo. Eu deveria ser capaz de consolá-lo, não o contrário. Afundo devagar. Vá embora, não vá. Deixe-me aqui, não me deixe. Tire-me daqui.
Em algum momento, minhas mãos abandonam meus ouvidos para arranhar a porta novamente. Logo escuto sua voz, minha voz, a voz de quem quer que eu seja agora.
– Cecília.
– ME DEIXA EM PAZ!
Outra risada ruidosa.
– Esta é uma das poucas coisas que ainda sou capaz de não fazer. Acha mesmo que eu abriria mão disso? – responde – Está enfiada aqui junto comigo.
– P-por... que...?
– Por que eu deveria lhe dizer?
Jogo-me no chão, encolhendo-me em uma bola. Não quero olhar, não posso olhar, não vou olhar.
– Me mata logo, se é isso que você quer tanto – minha voz é um fio de soluços.
Um som de correntes se arrastando pelo piso de lajotas imundas toma conta do quarto exíguo.
– Não é como se eu não quisesse fazer isso – O sangue sobe quente por meu rosto. Não consigo me desvencilhar quando Helena sussurra em meu ouvido – Na verdade, ainda vou, é só uma questão de tempo. Não se preocupe com isso.
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A Garota que Nunca Existiu
FanfictionEm um esquecido subúrbio na zona norte do Rio de Janeiro, Alice, uma fã fervorosa da franquia The Legend of Zelda, desaparece sem deixar rastros. Embora esteja ciente de que vive em uma cidade em que casos como este não passam de páginas de jornais...