Capítulo 36 - Cruz de estrada

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Deixo que meus pés se conduzam sozinhos enquanto ainda não consigo pensar – eles parecem saber para onde vou melhor que eu.

Mordo o pulso a cada pontada no tornozelo esquerdo e não consigo fazer mais que isso. O pânico supera a dor.

Sob meus olhos úmidos, o céu cinzento e o asfalto frio se fundem em uma coisa só. Pisco várias vezes para me livrar da visão, turva e entorpecente, e tento engolir o pesado nó de desespero garganta abaixo. Apenas um alívio de curto prazo até que a sensação absurda de falta de sentido retorne até meu peito e o sufoque contra os pulmões já esgotados.

Foco no contorno incerto dos edifícios abandonados e em nada mais.

Um zumbido incessante perturba meus ouvidos, junto ao som de minhas pisadas doloridas e o assobio do vento. No fundo, temo que sejam todos uma coisa só.

Inspira.

Corre.

Expira.

Corre.

Dor.

Corre.

Helena.

Vai.

Te.

Alcançar.

Corre.

Chegue lá antes dela.

Corre.

Onde?

Corre.

Você sabe bem até onde.

Eu caio.

Tateio o chão em pânico, as mãos trêmulas empurrando e arranhando o asfalto sujo. O solo cede sob meus pés, puxando-me dolorosamente devagar para debaixo da terra. Agito os braços, tentando me sustentar a qualquer custo. Desabo sob o peso de meu próprio corpo.

Não.

Já posso ver você daqui, Cecília!

Não.

O asfalto movediço engole meus joelhos.

Reprimo um grito, e tento fincar as unhas sob o chão novamente. Agachada, deixo que meus dedos agarrem as pequenas pedras misturadas à argamassa da superfície escorregadia. Empurro os braços para trás e iço o corpo para a frente, quase imobilizada. Não consigo controlar outro grunhido dolorido logo em seguida – o som se cospe sozinho.

Eu vou te alcançar! – não consigo me decidir se Helena cantarola ou vocifera – E mesmo se não o fizer, você já está me levando até sua amiga, não percebe? E já terá afundado antes mesmo de chegar. Você não tem escolha nenhuma, está me ouvindo?! Nenhuma!

Não olhe para trás.

Não olhe para trás.

Não olhe para trás.

Não sinto mais nada senão a lufada fria do vento antecipando a tempestade que ameaça e jamais cai.

Viro-me devagar, empurrando o chão com gemidos que decido não mais reprimir. Cuspo saliva escura e, ofegante, levanto o rosto, observando enquanto Helena me alcança com suas passadas arrastadas – nem por isso menos vorazes – pela rua movediça. Placas vermelhas coaguladas e sujeira endurecida protegem seu corpo ainda desnudo como uma armadura decrépita. Não quero pensar em como se livrou das correntes em que Jane a colocou – Helena é uma sobrevivente, no fim das contas. É isso que ela faz.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora