Capítulo 20 - Na Estrada

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"Estou indo devagar 
Alimentando minha chama 
Embaralhando as cartas do seu jogo
E na hora certa 
No lugar certo
De repente eu jogarei meu Às"

Blue Foundation - Eyes on Fire

Viagens não me são estranhas. Passei boa parte da infância acompanhando meus pais em pequenos passeios até Angra dos Reis, Cabo Frio, lugares assim. Até os 12 anos, meu pai chamava toda a família para uma pequena mudança de ares, quando já não aguentava mais a vida urbana e, com seu jeito sutilmente persuasivo, convencia-nos a acompanhá-los em suas ideias. Minha mãe batia o pé, demorando muito mais para ceder que Edgar e eu, por estar acostumada demais à estabilidade suburbana de Marechal Hermes. Mas meu pai sempre conseguia o que queria, de alguma forma. Foram anos felizes em que férias, ou qualquer pequeno feriado, fosse qual fosse, eram sinônimo de catar conchas na praia e fazer castelos de areia. Mas, eventualmente, estes anos acabaram.

Minha mãe se tornou ainda mais avessa a viagens depois que meu pai morreu. Ir à praia traria lembranças dolorosas do que poderia ter sido e não mais seria. Não saímos muito nos últimos anos. O hábito se perdeu como uma série de outras coisas e eu, que jamais admitira ter uma personalidade tão parecida com a de minha mãe, fui criando uma crescente rejeição a mudanças de cenário, acostumando-me cada vez mais ao que se tornou nosso modo de vida após aquilo tudo. Edgar eventualmente aprendeu a guardar suas ressalvas para si mesmo e, desde então, aprendemos a nos acostumar com o silêncio.

E cá estou eu, prestes a viajar novamente, e sem nenhuma ideia do que me acontecerá.

Não consegui dormir muito bem noite passada, mesmo com os remédios, segurando o antigo medalhão de Alice entre os dedos, tocando os detalhes da pequena borboleta encrustada, sem entender porque já não sentia medo, porque já não sentia nada. Talvez já tivesse sentido todo o medo que era capaz de absorver e lentamente entrasse em algum tipo de letargia. Tanto melhor. Mas era cedo demais para dizer, a ficha ainda não caíra muito bem e eu não sabia o que aconteceria quando caísse.

A bem da verdade, eu não sabia de quase nada.

Em meio à escuridão, lembrei-me das palavras de Impa.

Confio em você – dissera na véspera, quando a confrontara por me entregar aquele colar depois de tudo o que tinha causado, muito mais por dúvida que por medo – Mais que qualquer um daqui, deve saber a importância de manter este medalhão com você. Por mais estranho que pareça agora, ele irá protegê-la.

Por quê? – fora a única coisa que consegui dizer. Sabia que Link não ficaria nada contente se me visse em posse do medalhão e a última coisa que eu precisava era que uma briga atrasasse a nossa já atrasada missão.

– Por que, que as deusas não permitam, se porventura perder o controle novamente, e somente nesta situação, – Impa limpara a garganta – não hesite em abri-lo.

É madrugada e o sol está prestes a nascer. Aproveito enquanto ainda posso e observo cada detalhe da casa que acostumei a chamar de "lar" pelos últimos dois meses, antes que tudo o que vivi aqui não passe de um mero borrão, e organizo meus poucos pertences no estojo de pano que um dia fora de Helena, grande parte deles datando do dia em que ela recebera a tal missão. Em uma das muitas ironias desta minha vida, penso em como tudo o que é dela agora é meu, guardando o intocado saco de Rupees, observando cuidadosamente o arco talhado em madeira Kokiri e as flechas envenenadas, as tais Ofídias, rindo comigo mesma. Helena gostava de joguinhos enquanto eu mal suporto a mera ideia, mas encaixo as Ofídias na aljava dentro do estojo mesmo assim. Pelo que sei, desperdício de munição significa a mesma coisa em todos os lugares, inclusive Hyrule.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora