Capítulo 21 - Ultimato

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L. Shankar - Kiravani Tanam in Violin


Vadia.

Nojenta.

Você merece cada centímetro de dor que está sentindo agora.

Ainda estou aqui, não importa o quanto tente me eclipsar.

Porque eu importo.

Vou sair daqui e escarnecer de você.

Brincar no playground da sua consciência egoísta que não aprendeu a dividir.

Sim... eu vou.

***

Acordo com o suave farfalhar do teto verde das árvores acima de mim e, desta vez, não perco meu tempo fingindo que tudo é um sonho. A dor em meus músculos e costas retesados por conta do solo duro em que estive deitada é bem real, assim como as faixas irregulares arroxeadas contornando meus braços, novos hematomas para juntar à coleção, lembretes indesejáveis da noite anterior. Alongo e estalo os pulsos doloridos, traçando os dedos pelos machucados em uma vã tentativa de entender o que estou sentindo. Não demora muito para que meus dedos encontrem meus olhos, meu rosto sujo, descendo pela pele até descobrirem uma protuberância áspera e úmida. Também não demora para que eu os retire, assustada, como se tocasse em veneno. Fito as pontas dos dedos sujas de remela e sangue descascado, e lembro-me de nunca ter odiado tanto a mim mesma quanto naquele momento em que chorei afundada em uma vergonha que apenas o sono poderia me fazer esquecer. Mas como eu poderia, se a ferida exposta ainda arde ao toque?

Uma parte de mim sabe que Link não tentará mais nada se sabe o que é bom para si mesmo. Acontece que eu simplesmente não consigo acreditar nela.

Respiro fundo, tentando controlar o medo que ainda tremula em mim. Eu não nutria nenhuma esperança tola para acreditar que a noite passada não era uma possibilidade; de certa forma, talvez até esperasse aquele que seria o estopim de dois meses de raiva velada. Só não sabia o que faria quando acontecesse. Ainda há uma missão a ser cumprida por nós dois e pensar que permanecerei ao lado daquele que quase me matou exige muito mais benevolência do que posso oferecer agora, como estou. Não me importo com os avisos de Impa, que são quase uma ofensa diante de tudo o que vi. Como posso me esquecer da resignação selvagem nos olhos de Link quando cravou a faca em meu rosto? Como posso me esquecer de que estava realmente propenso a tirar a vida de alguém naquele momento? E quanto mais me lembro de tudo isso, torna-se cada vez mais fácil acreditar que tentará tudo novamente.

Quase sinto vontade de chorar de novo.

Acima das árvores, o céu se manifesta em um azul tímido, escurecido, precedendo o fim da madrugada e anunciando o início do dia. Ainda é bem cedo, talvez cinco da manhã, um horário em que resgato em minhas memórias como aquele que eu aproveitaria para alongar mais algumas horas na cama antes de ir para a escola. Mas estas memórias não existem mais.

Volto minha atenção para a trouxa com suprimentos, à procura da compota contendo um unguento para ferimentos feito por Impa. Vasculho o estojo de pano sem nenhum sinal do vidro, percebendo, frustrada, que terei de fazer a pasta sozinha. Observo com relutância a trilha de mato ao longe e tento me acalmar formulando um plano em minha cabeça. Conheço esta trilha, Impa me ensinou sobre as plantas daqui. Preciso apenas de um ponto de referência pelo qual retornar quando terminar de coletar a planta necessária para o unguento.

Levanto devagar do chão, amparando as mãos em uma pedra coberta de musgo, estudando a clareira com cuidado. Além da trilha, ouço um som de água corrente após longos minutos de concentração, e recordo-me do pequeno riacho pelo qual passamos quando ainda estávamos na estrada. Apanho o mapa e identifico o curso do rio Zora serpenteando pelos entornos de Kakariko, contornando a cadeia montanhosa precedente e já bem distante de nós, aproximando-se da Vila Kokiri. O riacho talvez possua alguma ligação com o rio, mas é difícil,  para mim saber o que isso significa exatamente para nossa localização, – talvez nada –, de modo que decido não contar com ele como ponto de referência para retornar à clareira. A única certeza que tenho é de que estamos próximos o suficiente da Vila por conta da mudança nos padrões da vegetação. Não demora muito para que eu decida que o ponto será uma gigantesca sequoia a alguns metros da clareira. Fico um bom tempo parada, sem saber o que fazer, com medo de me perder na imensidão da floresta e não conseguir voltar até aqui. Engulo em seco. Concluindo que já não tenho muito a perder, apanho meus suprimentos e caminho lentamente em direção à trilha tentando não olhar para trás.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora