Capítulo 6 - Through the Looking Glass

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Dor. Dor.

Tanta dor.

Não há consciência de mais nada, além da dor.

O cérebro emite uma mensagem clara e constante, que se espalha pelas sinapses e é transmitida para o resto do corpo: dói, dói demais. Sou incapaz de sentir algo além desta agonia atemporal, ou de rememorar a ausência dela.

A dor sempre existiu.

Como pude viver sem ela minha vida inteira?

Não lembro quando ou como começou, tampouco onde estou, se é claro ou escuro, quente ou frio, mas isso pouco importa agora. Sou um barco à deriva em um oceano distante, o sol truncando a madeira envelhecida, sofrendo passivamente, sem saber como me libertar. Eu poderia estar em qualquer lugar, pensar em qualquer outra coisa – a dor não vai embora.

Os espasmos irradiam-se da base do crânio e espalham-se pela espinha, pelos membros, pelo peito – por tudo. Minha garganta dói e é fácil acreditar que devo ter gritado, gemido em agonia. Talvez eu ainda esteja gritando, mas não ouço, não vejo, não sinto.

Acho que está escuro, uma chaga exposta, intangível e inalcançável, como fechar os olhos e não ter consciência da extensão da própria mente, no limite da busca de uma escuridão que parece existir, mas não se pode ver. Há uma agonia, uma frustração no ato de tentar vislumbrar a qualquer custo. Quero gritar, mas já não estive gritando? Não sei. Não ouço, não vejo, não sinto.

Já não tenho corpo algum. Sou uma partícula de agonia e terror pairando no nada. No nada que sempre existiu. No nada que sempre existirá.

Há quanto tempo não estou aqui? Há quantos segundos, minutos, horas, anos, séculos? Há quantos éons o nada sempre acabou?

Quem é você?

Quem você é?

Sou.

Sou e nada mais.

Sou uma nódoa no centro do eterno fenecido.

Sou...

Cecília da Costa.

Tire-me daqui.

Agora.

***

Despertar é bizarro, é medonho. Meus membros estão imobilizados e meus olhos estão firmemente fechados. Mas estou acordada. Minha consciência brilha no escuro, uma lanterna perdida esperando para ser encontrada em meio a um monólogo caótico e pensamentos incoerentes – resquícios de um pesadelo vívido demais para o meu gosto.

Quero abrir os olhos.

Minhas pálpebras tremem como se não fossem minhas, como se este corpo não fosse meu. Forço-as, luto contra o estupor venenoso, contra a vigília. Quero acordar. Preciso acordar.

Finalmente, meus olhos obedecem aos comandos, ainda que lentos. Os  membros saem de um profundo estágio de letargia, braços e pernas formigando furiosamente. Permaneço onde estou, esperando que o efeito desagradável passe – é como se eu tivesse saído de mim mesma.

Pergunto-me que horas são. Espero que não seja muito tarde; a essa altura, seria péssimo chegar tarde ao colégio. Minha mãe me mataria. Bem, pelo menos eu teria um pouco de humor autodepreciativo depois do pesadelo de hoje. Ok, Cecília, penso. Saia desta cama e vá encarar a rotina.

A primeira coisa que vejo é um céu vermelho-escuro pincelado de nuvens negras.

Ainda entorpecida pelo sono, pisco algumas vezes, tentando assimilar o que estou vendo. Devo estar em um sonho. Dizem que sonhos lúcidos são comuns. É a única justificativa que tenho para o céu tenebroso que vejo agora.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora