Capítulo 38 - Autofagia

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Lava, fogo fátuo.

Ilusão.

Estou de volta.

Encaro janelas em chamas

Olhos de chamas

Âmbar translúcido

Seu corpo serpenteia abandonado

Dragão que se dissolve e retorna em carne viva

Volvagia é seu nome.

Fada e herói escolhem se esquecer de mim no fogo cruzado

Hesitar é sentença de morte

Se vejo o futuro, protejo o presente

Minhas mãos corroem de inexistência

A trama jamais será contrariada

E que assim seja.

***

Helena não está em casa, e não sei bem o que pensar disso.

Ando pelos cômodos do apartamento como se ele não me pertencesse. As luzes continuam desligadas no corredor, mesmo que já tenha anoitecido lá fora, e a brisa fria balança o quadro de meu pai acima do sofá. Esta casa é minha, os ventos não.

– Alice, eu tô aqui.

Voltei para cá quase rezando por um acidente, um milagre de tentativa e erro. Vim avisá-la de Sheik, de tudo o que me dissera, mas não entendo... quem é Sheik mesmo?

A cada passo, um novo tipo de esquecimento.

Sento no sofá e ligo a televisão. Não entendo as imagens, manchas tremidas em vermelho, preto e azul. A câmera não ajuda, tampouco a legenda "Imagens de cinegrafista amadora" abaixo da filmagem. Gritos abafados pelo péssimo microfone (de celular, tenho certeza) irrompem das caixas de som, um gutural e outro mais agudo. Seja lá quem estiver gravando, contudo, não emite som algum senão o ruído pesado da própria respiração.

Mudo de canal.

A filmagem caótica dá lugar a uma sala de espelhos, daquelas que a gente geralmente encontra em parques de diversão. Seguindo a câmera, observo enquanto os espelhos se derretem, lentamente escorrendo pelo chão seco e revelando um céu nublado antes oculto pelo vidro. O cinza quase transparente das águas pegajosas se confunde com as nuvens carregadas do céu. Ao longe, uma árvore desfolhada se eleva de um montinho de terra seca – abaixo, um reflexo perfeitamente nítido e simétrico do tronco estéril, como se a água quieta ocultasse uma segunda dimensão sobre si. Sombras começam a se movimentar pela superfície, chapinhando pelo chão. Imagem alguma se forma debaixo de seus pés.

Mudo de canal.

A imagem agora é a de meu quarto, e a câmera torna a tremer. Aperto o controle com força quando a silhueta de minha mãe se revela por trás da porta.

– Toma todo o leite que deixei aí, vai te ajudar a dormir – A voz é tão clara quanto me lembro – Outra coisa: não importa o quão boa atriz você seja, seu irmão já percebeu.

Chiado na gravação, que retorna em um loop estranho de câmera (o que lembra uma fita sendo rebobinada) até que focalize novamente. Minha mãe continua na mesma posição, embora já não use as mesmas roupas.

– Cecília... tem certeza de que tá tudo bem com você? – Algo em sua voz luta para sair, mas ela reprime.

A pessoa por trás da câmera logo responde:

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora