Este é outro lugar. Longe da casa, longe de Alice.
Não me pergunte como eu sei disso, como eu sei que este é o primeiro andar. Sempre há um vestígio de sanidade oculto em meio ao delírio, em meio à loucura. Este é o meu: saber onde estou, mas não saber como ou por que estou.
É fim de tarde por aqui, debaixo do céu limpo, tingido em rosa, amarelo e azul.
Caminho sem rumo pela pista vazia da ponte, acima dos outdoors coloridos. Abaixo, quilômetros e quilômetros de mar para todos os lados, e o concreto em que piso parece cada vez mais frágil a cada passo. Manco na borda do asfalto, amparando os braços nos postes de iluminação quando o peitoril, que separa a pista do mar aberto, não é suficiente. Tento não me esquecer de acenar o polegar levantado toda vez que um carro solitário acelera para longe de mim.
Ninguém daria carona a uma menina usando uma túnica medieval imunda. Mas não custa tentar. Estes mundos para onde a consciência me leva não têm regras, afinal. Alice já me avisara.
Mesmo quando os carros vão embora, nunca estou sozinha. Sussurros fracos, vozes de choro e preces silenciosas seguem meu rastro errático. Vozes masculinas embargadas rezando Ave-Maria, confundindo-se com o ruído das ondas. São eles, operários enterrados sob os alicerces da ponte, aqueles que ajudaram a construí-la, eternamente pedindo intercessão.
Lembro-me daquelas histórias sobre a ponte Rio-Niterói ser um cemitério a céu aberto.
Vem, eles dizem, fica com a gente. Sente a beleza da nossa dor. Reza uma prece. Ave-Maria.
Não consigo. Quero berrar a todos eles que tenho uma casa para voltar, mas não consigo.
Rezo uma Ave-Maria, menos por convicção que por hábito.
"Rezem por mim", é o que desejo sussurrar, mas não o faço, "Eu também preciso disso".
Mais um carro acelera pela pista deserta, e sequer tenho tempo de levantar o polegar desta vez. É o sedã prata, aquele que atropelara a mim e a Helena na véspera, que passa raspando por mim.
Estrondo.
Cubro o rosto com os braços e fecho os olhos com força.
O assobio violento das rodas arranha o asfalto. E, então, segue-se o esmagar de metal contra concreto.
Ponho-me a caminhar em direção ao sedã estraçalhado pela mureta que separa as duas vias da ponte, a metros e metros de mim. Quem dirigia? Quantas pessoas dentro? Será possível ainda salvar alguém? Grunho de dor enquanto apresso o passo, empurrando os braços pelas muretas, e nunca parece ser rápido o suficiente.
Tum, tum, tum.
Batidas ritmadas passam a me acompanhar conforme eu me aproximo. Elas vêm do carro.
O metal retorcido vai ganhando novos contornos. O capô estraçalhado não tem salvação – com a lataria da frente esmagada feito plástico pelo bloco sólido de cimento e o vidro estilhaçado, seja lá quem estava no banco do motorista partiu desta para melhor. A traseira, contudo, não parece ter sofrido muito. As batidas vieram de lá.
Uso de meu último impulso na mureta para correr até o centro da pista, pisoteando em estilhaços soltos de vidro, plástico e metal. Não é hora para sentir dor. Mordo os lábios e abro a porta dos bancos de trás com a força do último pico de adrenalina que me resta.
Uma figura desaba em meus braços e caio de joelhos.
Está tão viva quanto poderia, ofegando contra meu peito e agarrando meus ombros. Tremo acima dela, sem saber o que fazer.
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A Garota que Nunca Existiu
FanfictionEm um esquecido subúrbio na zona norte do Rio de Janeiro, Alice, uma fã fervorosa da franquia The Legend of Zelda, desaparece sem deixar rastros. Embora esteja ciente de que vive em uma cidade em que casos como este não passam de páginas de jornais...