Capítulo 39

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Este é outro lugar. Longe da casa, longe de Alice.

Não me pergunte como eu sei disso, como eu sei que este é o primeiro andar. Sempre há um vestígio de sanidade oculto em meio ao delírio, em meio à loucura. Este é o meu: saber onde estou, mas não saber como ou por que estou.

É fim de tarde por aqui, debaixo do céu limpo, tingido em rosa, amarelo e azul.

Caminho sem rumo pela pista vazia da ponte, acima dos outdoors coloridos. Abaixo, quilômetros e quilômetros de mar para todos os lados, e o concreto em que piso parece cada vez mais frágil a cada passo. Manco na borda do asfalto, amparando os braços nos postes de iluminação quando o peitoril, que separa a pista do mar aberto, não é suficiente. Tento não me esquecer de acenar o polegar levantado toda vez que um carro solitário acelera para longe de mim.

Ninguém daria carona a uma menina usando uma túnica medieval imunda. Mas não custa tentar. Estes mundos para onde a consciência me leva não têm regras, afinal. Alice já me avisara.

Mesmo quando os carros vão embora, nunca estou sozinha. Sussurros fracos, vozes de choro e preces silenciosas seguem meu rastro errático. Vozes masculinas embargadas rezando Ave-Maria, confundindo-se com o ruído das ondas. São eles, operários enterrados sob os alicerces da ponte, aqueles que ajudaram a construí-la, eternamente pedindo intercessão.

Lembro-me daquelas histórias sobre a ponte Rio-Niterói ser um cemitério a céu aberto.

Vem, eles dizem, fica com a gente. Sente a beleza da nossa dor. Reza uma prece. Ave-Maria.

Não consigo. Quero berrar a todos eles que tenho uma casa para voltar, mas não consigo.

Rezo uma Ave-Maria, menos por convicção que por hábito.

"Rezem por mim", é o que desejo sussurrar, mas não o faço, "Eu também preciso disso".

Mais um carro acelera pela pista deserta, e sequer tenho tempo de levantar o polegar desta vez. É o sedã prata, aquele que atropelara a mim e a Helena na véspera, que passa raspando por mim.

Estrondo.

Cubro o rosto com os braços e fecho os olhos com força.

O assobio violento das rodas arranha o asfalto. E, então, segue-se o esmagar de metal contra concreto.

Ponho-me a caminhar em direção ao sedã estraçalhado pela mureta que separa as duas vias da ponte, a metros e metros de mim. Quem dirigia? Quantas pessoas dentro? Será possível ainda salvar alguém? Grunho de dor enquanto apresso o passo, empurrando os braços pelas muretas, e nunca parece ser rápido o suficiente.

Tum, tum, tum.

Batidas ritmadas passam a me acompanhar conforme eu me aproximo. Elas vêm do carro.

O metal retorcido vai ganhando novos contornos. O capô estraçalhado não tem salvação – com a lataria da frente esmagada feito plástico pelo bloco sólido de cimento e o vidro estilhaçado, seja lá quem estava no banco do motorista partiu desta para melhor. A traseira, contudo, não parece ter sofrido muito. As batidas vieram de lá.

Uso de meu último impulso na mureta para correr até o centro da pista, pisoteando em estilhaços soltos de vidro, plástico e metal. Não é hora para sentir dor. Mordo os lábios e abro a porta dos bancos de trás com a força do último pico de adrenalina que me resta.

Uma figura desaba em meus braços e caio de joelhos.

Está tão viva quanto poderia, ofegando contra meu peito e agarrando meus ombros. Tremo acima dela, sem saber o que fazer.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora