Capítulo 22 - Pela luz dos olhos teus

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 "Sim, mas agora,

Enquanto dura esta hora,

Este luar, estes ramos,

Esta paz em que estamos,

Deixem-me me crer

O que nunca poderei ser."

(Ricardo Reis)

A Vila Kokiri sempre parece estar a anos-luz de distância. Sem distração alguma senão os ruídos vindos da mata, cavalgar pela estrada é como um daqueles sonhos maçantes em que se corre em busca de algo e nunca se chega até ele porque o subconsciente é sádico demais. Repito para mim mesma que não se trata de sonho nenhum, mas posso me perder ali com a mesma facilidade de um pesadelo, se não tomar cuidado. Esta inconstância é uma das coisas que mais me irrita neste lugar, o quão difícil é defini-lo de verdade, mas está longe de ser o pior dos meus problemas.

Lanço um olhar de soslaio para minha insólita companhia, ombros retesados e braços contraídos até as mãos que seguram as rédeas de Epona – é esse o nome? – como se ela fosse escapar de seu controle a qualquer momento, sem nunca baixar a guarda. Levanto o olhar para seu rosto inchado e constato, satisfeita, que a marca dolorida do golpe ainda está lá. A satisfação dura pouco, contudo. Enquanto eu o analiso cuidadosamente, pergunto-me se não fora ingenuidade da minha parte acreditar que Link me deixaria em paz e que todo o meu medo se converteria em desprezo. 

Não posso mais mentir para mim se quiser um mínimo de paz antes de dormir. Sim, ainda tenho medo, tanto medo que já desisti de penetrar em cada uma de suas camadas, que decifrá-las prova ser, minuto após minuto, hora após hora, um esforço inútil. A diferença, talvez, é que este medo divide espaço com a raiva que tenho guardada desde a primeira vez que o vi. Ela aumentou. E pensar que Link ainda será meu parceiro em toda esta loucura que começou quando Impa me salvou de Helena – embora eu, no fundo, saiba que tudo começou há muito mais tempo – é como cutucar com sal uma ferida aberta com um espinho encravado.

Impa um dia dissera que Link tem muito mais medo de mim que eu dele. Se eu não estivesse tão arisca e fosse um pouco mais crédula, talvez pudesse usar isso a meu favor.

Fito-o novamente, não por desconfiança desta vez, voltando meu olhar para o gorro verde que recentemente retornou a usar, mais especificamente para um ponto emitindo uma fraca luz azulada, imperceptível a qualquer desavisado, onde ela costuma se esconder.

Lembro-me, então, do emaranhado confuso de acontecimentos que fora o dia anterior. 

Com os nervos ainda aflorados por conta da discussão cedo naquela manhã, as horas que se seguiram na estrada não foram agradáveis para nenhum de nós. Sem escolha, eu apenas rememorava aquelas poucas palavras ríspidas trocadas e especulava como uma maluca, sempre esperando o pior. Se eu não pensava nisso, então me perdia em indagações a respeito da criaturinha que me seguira antes e dissera todas aquelas coisas estranhas, o que me levava a agarrar com força a tudo aquilo que parecia fazer sentido como, por exemplo, o fato de que Link e aquela coisa, seja lá o que fosse, possuíam uma ligação, e de que ele parecia ser responsável pela esfera. Não conseguia encontrar lá muita lógica nisso, até me lembrar que só de haver uma bola brilhante falante na questão já punha a lógica em xeque por si só.

Frustrada, simplesmente entreguei-me ao marasmo de uma paisagem que quase nunca mudava, a guarda sempre alta por conta das onipresentes patrulhas Gerudo, monitorando os viajantes. Mas afinal, quem desconfiaria de nosso disfarce, dois jovens imigrantes da Cidade Central tentando a sorte em busca de suprimentos no exaurido lago Hylia? Impa me contara a respeito da fama do local, outrora um lago de águas cristalinas rico em peixes, reduzido a uma espécie de aterro a céu aberto que atraía refugiados com falsas promessas de prosperidade, depois que os portões de Kakariko se fechavam diante de seus olhos. Não havia espaço para imigrantes na metrópole, e poucas eram as almas caridosas, como o senhor que Helena enganara, dispostas a ajudar um refugiado. A única rota para o lago era a mesma tomada para se chegar à Vila Kokiri – grande parte das rotas principais e atalhos haviam sido fechados com o início do reinado de Ganondorf.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora