Capítulo 30 - Existenz

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Já deveria estar acostumada com a letargia que antecede o despertar, mas Helena tem razão ao menos nisso: eu nunca aprendo.

É a segunda vez que isso me acontece, e seria ingênuo demais da minha parte esperar que esta seja a última.

Recobro os sentidos com lentidão, como se finalmente emergisse da superfície após insuportáveis segundos sufocada debaixo d'água – só eu sei como nunca tive lá muito fôlego pra natação. Queria poder lembrar que estou bem, que estou de volta ao meu corpo, todas essas coisas que repito a mim mesma de tempos em tempos para não enlouquecer de vez, mas, sendo inteiramente sincera, eu perderia meu tempo adiando o inevitável. E se eu não tinha muito tempo antes, tenho bem menos agora.

Sentada, franzo a testa e pisco os olhos, tentando me ajustar à ausência de luz do cômodo, seja ele qual for. Uma pressão fria e sólida toca a jugular assim que tento me levantar, seguida de um puxão. Tento não entrar em pânico com a imagem de Link, agachado de frente para mim, segurando uma faca contra meu pescoço. Navi flutua sobre a cena sem emitir som algum.

Esquivo-me por instinto, mas ele é mais rápido.

– Fica quieta!

Meus punhos permanecem cerrados em defensiva.

– O que... – tusso, testando a voz com dificuldade, as palavras ainda sedadas pelo sono – O que... tá acontecendo aqui?

Link fita Navi como se ambos se entreolhassem, sua mão ainda esfolando meu braço direito.

– N-nenhum de vocês vai me dizer nada...? – engulo em seco, exasperada – O que aconteceu? O que eu fiz?

O som arranhado de uma risada fina e familiar faz com que eu me lembre pouco a pouco: o desmaio, as vozes, espelhos, limbo. Depois, apenas nada. Apenas medo do que não posso mensurar.

– Jane aconteceu – Link responde, por fim.

O sangue ferve em minhas têmporas.

– Jane?! – exclamo – Jane tava aqui?! O que ela fez? O que ela falou? Pelo amor de Deus, cês tem que me dizer!

Link ignora minhas súplicas e volta-se para Navi novamente.

– Não foi você quem disse que ela era uma pessoa, Navi? – Seu tom é cortante – Ainda acredita nisso depois de tudo o que viu ela fazer?

A fada permanece em silêncio.

– Um de vocês vai ter que me falar do que houve aqui. Eu tenho o direito de saber! – expiro – Eu tô implorando! O que ela fez comigo?!

– Percebe o quanto é perigosa? Nem sequer tem consciência do que fez! – prossegue, ainda encarando Navi com insistência, como se eu não estivesse aqui – Eu disse desde o início que trazer essa coisa pra cá só nos traria mais problemas!

Meu peito sobe e desce, acelerado.

– Fala comigo que nem gente, Link, eu te exijo isso – sibilo – Quero saber o que aconteceu aqui!

Link aproxima ainda mais a faca.

– Não vou deixar você acabar com tudo de novo.

– Sai... de perto... de mim...! – desvencilho-me, ofegante.

– Ah não, de novo não! – ele me arremessa contra a parede.

– Não, Link... – Navi fala pela primeira vez, com uma pontada de resignação – Acho... acho que ela merece saber, pelo menos.

– Mas você viu o que eu...

– Sim, mas como cê acabou de dizer, ela não viu.

Sua voz é morosa, pesada, totalmente distante do tom suave e infantil com o qual me acostumei nos últimos dias. Com o corpo trêmulo imprensado contra o concreto, ouço-a narrar o tortuoso trajeto pelo qual trilharam em torno daquele templo decrépito junto a Jane, cujas palavras enigmáticas serviram como a única e frágil garantia de que não lhes faria mal algum, o que não impediu que Link a mantivesse sob seu jugo durante todo o caminho. A bem da verdade, Navi ressalta, eles nunca tiveram controle sobre ela, muito menos sobre o que era capaz de fazer ali – sua aura era fria, inumana, tão antiga quanto os pináculos daquele velho santuário. As piores suspeitas de ambos se concretizaram quando, atacados por um grupo de esqueletos armados, Jane se afastou de Link.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora