Capítulo 12 - Interrogações

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Em algum momento embrenhado na urdidura incessante das horas, não havia nada para sentir, nada para tocar ou ouvir. De repente, há tudo.

Começa devagar, com uma sensação de dormência nos pés e nas mãos – eu ainda os possuo? – que culmina em uma forte cãibra. A isto, segue-se a consciência de cada um dos cortes, lacerações e machucados espalhados pela minha pele. A audição vem logo depois, com um perturbador zumbido em meus ouvidos, o som do silêncio que sempre detestei. Vou me apercebendo do gosto metálico e amargo de meus lábios momentos depois; junto a este, vem a sensação de que meus dentes parecem grandes demais em minha boca, e que eu poderia cuspi-los a qualquer momento.  Conforme a vigília se dissolve, a sensação desaparece devagar, embora nunca me abandone totalmente, acompanhada por uma crescente pressão na garganta. O despertar total vem, por fim, e meus olhos, antes fechados como que costurados, abrem-se.

Junto ao despertar, há dor.

Não mais suportando manter meus lábios cerrados, sinto um grito de agonia cortar ainda mais minha garganta.

As lágrimas descem, viscosas e grudentas, por meu rosto sujo e suado. Cheiro de sangue ressecado – meu sangue – , imundície e suor seco impregna meu nariz. Vozes aturdidas, milhares de almas sem corpos presas em cacos de vidro, gritam em minha mente. Outras sussurram, embora todas, sem exceção, façam a mesma pergunta.

Quem é você?

Quem você é?

E eu respondo.

Sou.

Sou e nada mais.

Sou uma colcha de retalhos cortada em mil pedaços e costurada novamente.

Sou Cecília da Costa e mais ninguém.

Quero gritar e chorar, quero rir histericamente e berrar aos céus de agonia e êxtase incontido, pois este corpo é meu e de mais ninguém – mesmo que esta seja apenas uma mentira que eu conte a mim mesma. Toda a dor, todo o trauma que sinto correr voraz, consumindo as entranhas como um parasita, é o atestado vivo de que estou no controle. Junto a tudo isso, no entanto, o medo paira sobre mim novamente, onipresente. Cresce em mim a ameaça velada de Helena e as perguntas deixadas com ela: para onde foi? Para onde irá? De onde veio? Pergunto-me, não pela primeira vez, se ela me matará por dentro.

O medo cresce, irradia-se em ondas longas, alcançando os tornozelos esfolados, as mãos dormentes, a cintura machucada, materializando-se na constatação de que estou imobilizada e amarrada a uma pilastra de madeira, não mais um mero sentimento de alerta, mas uma dor palpável que culmina em uma nova pergunta, esta ainda mais urgente.

Onde estou?

Trêmula, e tão rápido quanto posso, obrigo-me a me recuperar do estado de choque. Meus gritos interiores devem se calar, por ora. Engulo em seco e ajusto a vista à escuridão, algum tipo de aposento subterrâneo. É meu destino estar nestes lugares, penso secamente. Minha respiração se mistura ao ar quente e opressivo, seco e repleto de poeira, favorecendo pensamentos mórbidos. Os minutos correm e, com eles, as dúvidas crescem mais rápido que posso pensá-las em palavras.

Como cheguei até aqui?

Imagens da noite anterior passam por mim, vislumbres falhos e roubados de minha consciência sonolenta, imagens nítidas de Helena. Quando percebo que minhas memórias de nada servirão, recorro às de minha contraparte que se desenrolam diante de mim, nenhuma praticamente agradável. Escondo-me diante de suas lembranças mais nefastas, enojada, observando todos os acontecimentos da véspera diante de seus olhos: a chegada a Kakariko Village, o esconderijo no cemitério, a luta com Link, seu desmaio fulminante responsável por minha recuperação. Não me contenho diante desta memória, deliciando-me com a sucessão de sentimentos contraditórios em sua mente com um prazer cruel. Aquela parece ser a primeira vez que Helena experimentava o medo, a perda completa de controle para algo desconhecido e fora de seu alcance. Ainda não entendo muito bem todas as circunstâncias que tornaram isto possível, mas sinto-me um pouco vingada em meio ao temor.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora