Capítulo 19 - Dores do crescimento

1.4K 123 13
                                    

– Feche os olhos – sussurra uma voz calma em meu ouvido.

Obedeço, enquanto um áspero pedaço de pano é amarrado em meu rosto. Seguro mãos igualmente ásperas, deixando-me guiar por elas, desajeitada.

Tão cega...

– Um passo de cada vez, Cecília – instrui a voz, pacientemente – Não se preocupe, que estou aqui.

Engulo o orgulho e a necessidade de controle, que descem pela garganta deixando um gosto agridoce na boca, tentando ignorá-los o quanto posso. Isso é importante.

Um passo de cada vez, repito.

Um passo de cada vez, faço.

Não gosto de depender de ninguém, mas não é difícil seguir comandos diante de uma necessidade, menos ainda quando se deposita confiança naquele que comanda. Chega a ser irônico, até – comecei meus treinos nesta casa sempre com medo de confiar, para logo depois descobrir que esta seria a única opção disponível. Ando devagar, temendo a madeira ranger debaixo de meus pés, lembrando-me para onde estou indo, o que verei, e quase desejo recuar, mas não. 

– Pare.

Obedeço novamente. As mãos se soltam das minhas suavemente, como que para não me assustar, desenrolando com agilidade os nós do tecido velho que, ao cair sobre meus pés descalços, quase faz com que eu me sinta nua. Não há mais nada que me separe disso, absolutamente nada a não ser meus olhos. Por reflexo, baixo a cabeça e respiro fundo, preparando-me para o que está bem na minha frente e que me recuso a enxergar.

Um fio de tensão corta o som do silêncio, uma expectativa quase febril da próxima ordem.

– Cecília – a voz faz uma pequena pausa – Abra os olhos.

Levanto lentamente a cabeça, como se, executando os movimentos devagar, fosse capaz de controlar o tempo na mesma medida. Gosto desta falsa sensação de controle e tento amparar-me nela, a despeito do suor frio em minhas mãos dormentes. Quando já não posso prolongar o momento, prendo a respiração e finalmente abro os olhos.

Com o corpo trêmulo, mantenho-me de pé, encarando meu reflexo no espelho como a um desconhecido. Irredutível, o reflexo devolve o olhar.

Nunca a vi em toda a minha vida, este rosto de formas incomuns, alienígenas, anormais, ouso dizer, até antinaturais. Fito a garota à minha frente pela primeira vez e ela aceita o desafio, fitando-me em retorno com tamanha veemência que quase desejo desviar o olhar.

Sou eu?

Ela não é tão bonita, mas dificilmente seria feia. Seus cabelos castanhos, outrora repicados à altura dos ombros, agora descem até metade do peito, embora não o cubra. Sua pele é pálida, não saudável, os braços e o rosto repletos de pequenos hematomas e escoriações, manchas azuis e roxas eternas como tatuagens indesejadas. As unhas estão quase todas roídas, desfiadas. Seus olhos cinzentos fitam-me com uma estranha mistura de cansaço, medo e altivez selvagem, muito mais antigos que o resto do corpo. Seria ela a Teresa daquele poema idiota, cujos olhos nasceram dez anos antes que o resto do corpo, esperando para nascer de vez? Talvez. Seu olhar é de uma intensidade tal que só lembro de ter visto em Link em seus piores dias, mas mesmo ela traz algo além: desvairados, de uma agressividade passiva, sem ter com o que substituir uma antiga inocência perdida da pior forma possível. Pobre alma de corpo tão frágil quanto uma boneca de trapos, de corpo tão forte quanto sua vontade.

Seja lá quem for, posso apenas lamentar seu azar.

Hesitante, abro a boca, fazendo menção de falar, e ela também abre a boca, interrompendo o movimento ao mesmo tempo em que interrompo o meu. Impa está logo atrás de mim e eu a fito do espelho, lançando-lhe um olhar questionador, enquanto ignoro a garota que parece estar tanto à minha frente, quanto atrás.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora