Capítulo 32 - Sublimação

1K 91 9
                                    

As chamas estalam, subindo e descendo, aquecendo-me e distraindo-me por horas até meus olhos doerem. Sentada sob a tora, raspo com as unhas imundas o sangue ressecado em minhas mãos, esperando, refletindo sobre verdades desconfortáveis. Digo e repito: sou covarde demais para ir embora. Não há um motivo sólido para tal, se uma fogueira crepitante em meio à noite escura já não me denunciar. Não tenho medo de ser encontrada pelas pessoas erradas: andarilhos, espíritos, kokiris sobreviventes; tenho medo é de ser encontrada pelas pessoas certas.

Quando já consigo enxergar a pele clara da palma de minhas mãos por baixo da sujeira raspada, retiro o origami de minhas vestes novamente e o desfaço. Antes de fugir, parecia errado demais dobrá-lo de outro jeito que não fosse o original e, a muito custo, mantive o formato de borboleta. O material, embora enrugado, é de um papel laranja fino e sedoso, quase translúcido. Agora que estou um pouco mais calma, tento discernir as formas rabiscadas sob uma das faces, evitando virar para o outro lado, onde está a frase bizarra. Levo-o até a luz do fogo, que atravessa a superfície do papel e revela o contorno fraco de uma mão; seguindo seu traço, a extensão de um braço se revela, mas não consigo ver muito mais debaixo da interseção caótica de linhas debaixo, esboços e esqueletos à aparência de um garrancho feito em lápis 2B. Não faço a mínima ideia do que significa.

E pensar que escalei paredes, persegui meu reflexo e quase enlouqueci pra conseguir essa coisa.

Cascos esmagam folhas e gravetos jogados a esmo, seguidos de vozes nervosas e sussurrantes. Apresso-me em esconder o papel de volta à túnica, um familiar calafrio atravessando a barriga. Esta é uma das raras vezes em que sei o que devo fazer, e posso contar as demais nos dedos de uma única mão. Tenho sorte, poderia ser muito pior. Mas, como nas demais ocasiões, saber é o de menos, e fazer continua sendo a parte mais complicada.

O aviso de Sheik ainda chia em meus ouvidos e as palavras estão na ponta da língua. Dependendo do que acontecer esta noite, posso ter chegado a um ponto sem retorno.

– Você ouviu a Saria... não é culpa sua, nunca foi – murmura uma vozinha.

– Estou perto demais de cometer o mesmo erro – retruca outra, mais grave.

– Fala baixo, ela pode tentar escapar de novo!

Respiro.

– Estou ouvindo – anuncio, tentando impedir o tremor em minha voz.

Botas batem com mais força sob o chão e a seta de uma flecha é apontada contra o meu rosto.

– Não vou te atacar, Link.

– Não se mexa!

Só preciso de um pouco mais de tempo.

– Por que fugiu? – guincha Navi – Ficamos te procurando a tarde inteira!

Resisto à vontade de fechar os olhos e, cuidadosamente, viro-me para encará-los. Não tenho outra escolha senão ser sincera.

– Por causa disso – aponto para a flecha em riste – Cês não iriam me ouvir.

– Mas a gente te escutou, Cecília – O ponto de luz se aproxima um pouco mais de mim, cauteloso como se não me conhecesse.

– Antes ou depois de vocês pegarem minhas coisas e quase me deixarem pra trás? – mantenho os punhos cerrados nos bolsos e inspiro mais uma vez, suavizando a voz a contragosto – Olha, sei que não devia ter saído assim. Eu tava assustada e precisava de um tempo pra decidir o que fazer – não minta para si mesma – Eu ainda sou a Cecília. Não pretendo deixar de ser tão cedo.

– Você não tem como dizer isso – Link retruca – Já é perigosa o suficiente como está.

– Cê não vai me matar, vai? O que Impa pensaria disso? – Fito suas pupilas dilatadas, as mãos ligeiramente hesitantes segurando a corda do arco, os lábios secos pressionados em uma linha rígida.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora