As chamas estalam, subindo e descendo, aquecendo-me e distraindo-me por horas até meus olhos doerem. Sentada sob a tora, raspo com as unhas imundas o sangue ressecado em minhas mãos, esperando, refletindo sobre verdades desconfortáveis. Digo e repito: sou covarde demais para ir embora. Não há um motivo sólido para tal, se uma fogueira crepitante em meio à noite escura já não me denunciar. Não tenho medo de ser encontrada pelas pessoas erradas: andarilhos, espíritos, kokiris sobreviventes; tenho medo é de ser encontrada pelas pessoas certas.
Quando já consigo enxergar a pele clara da palma de minhas mãos por baixo da sujeira raspada, retiro o origami de minhas vestes novamente e o desfaço. Antes de fugir, parecia errado demais dobrá-lo de outro jeito que não fosse o original e, a muito custo, mantive o formato de borboleta. O material, embora enrugado, é de um papel laranja fino e sedoso, quase translúcido. Agora que estou um pouco mais calma, tento discernir as formas rabiscadas sob uma das faces, evitando virar para o outro lado, onde está a frase bizarra. Levo-o até a luz do fogo, que atravessa a superfície do papel e revela o contorno fraco de uma mão; seguindo seu traço, a extensão de um braço se revela, mas não consigo ver muito mais debaixo da interseção caótica de linhas debaixo, esboços e esqueletos à aparência de um garrancho feito em lápis 2B. Não faço a mínima ideia do que significa.
E pensar que escalei paredes, persegui meu reflexo e quase enlouqueci pra conseguir essa coisa.
Cascos esmagam folhas e gravetos jogados a esmo, seguidos de vozes nervosas e sussurrantes. Apresso-me em esconder o papel de volta à túnica, um familiar calafrio atravessando a barriga. Esta é uma das raras vezes em que sei o que devo fazer, e posso contar as demais nos dedos de uma única mão. Tenho sorte, poderia ser muito pior. Mas, como nas demais ocasiões, saber é o de menos, e fazer continua sendo a parte mais complicada.
O aviso de Sheik ainda chia em meus ouvidos e as palavras estão na ponta da língua. Dependendo do que acontecer esta noite, posso ter chegado a um ponto sem retorno.
– Você ouviu a Saria... não é culpa sua, nunca foi – murmura uma vozinha.
– Estou perto demais de cometer o mesmo erro – retruca outra, mais grave.
– Fala baixo, ela pode tentar escapar de novo!
Respiro.
– Estou ouvindo – anuncio, tentando impedir o tremor em minha voz.
Botas batem com mais força sob o chão e a seta de uma flecha é apontada contra o meu rosto.
– Não vou te atacar, Link.
– Não se mexa!
Só preciso de um pouco mais de tempo.
– Por que fugiu? – guincha Navi – Ficamos te procurando a tarde inteira!
Resisto à vontade de fechar os olhos e, cuidadosamente, viro-me para encará-los. Não tenho outra escolha senão ser sincera.
– Por causa disso – aponto para a flecha em riste – Cês não iriam me ouvir.
– Mas a gente te escutou, Cecília – O ponto de luz se aproxima um pouco mais de mim, cauteloso como se não me conhecesse.
– Antes ou depois de vocês pegarem minhas coisas e quase me deixarem pra trás? – mantenho os punhos cerrados nos bolsos e inspiro mais uma vez, suavizando a voz a contragosto – Olha, sei que não devia ter saído assim. Eu tava assustada e precisava de um tempo pra decidir o que fazer – não minta para si mesma – Eu ainda sou a Cecília. Não pretendo deixar de ser tão cedo.
– Você não tem como dizer isso – Link retruca – Já é perigosa o suficiente como está.
– Cê não vai me matar, vai? O que Impa pensaria disso? – Fito suas pupilas dilatadas, as mãos ligeiramente hesitantes segurando a corda do arco, os lábios secos pressionados em uma linha rígida.
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A Garota que Nunca Existiu
FanfictionEm um esquecido subúrbio na zona norte do Rio de Janeiro, Alice, uma fã fervorosa da franquia The Legend of Zelda, desaparece sem deixar rastros. Embora esteja ciente de que vive em uma cidade em que casos como este não passam de páginas de jornais...