Capítulo 37 - Prioridades

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Quente.

Vermelho-escuro.

Não preciso abrir os olhos para saber que a sombra da véspera nos encontrou. A presença está ali e não se move.

Tusso algumas vezes e tento enxergar além das nuances de vermelho do teto pedregoso – frestas do outro lado do espaço deixam escapar a pouca luz que as ilumina. Fragmentos de conversas, palavras sem nexo, imagens e lugares se misturam em meus pensamentos, desorientando-me, quase tonta. Meu corpo se levanta devagar, moroso, desrespeitando meus comandos.

Mãos firmes me amparam antes que eu escorregue sob o peso de meus braços flácidos. A sensação é a de dejà vu.

– Parece que você foi a primeira a acordar – comenta uma voz monótona e desagradavelmente familiar.

A alguns metros do outro lado da minúscula e sufocante caverna em que estamos, Link jaz desacordado. Há bandagens e curativos encardidos encobrindo seus braços e peito, o que me leva a procurá-los (e achá-los) em mim também. Quando finalmente consigo me recostar, as mãos ainda amparando meus braços com cuidado, uma fisgada ataca minhas costas.

É como se todos os gatilhos se ativassem de uma vez só.

Bailarina, chave, Helena, origami, sombra, Alice.

Alice.

Amparo-me entre uma das pedras sobressalentes e tento controlar minha respiração errática com algumas inspirações profundas.

Inspire.

Expire.

Viu como é mais fácil assim?

Inspire.

Expire.

As mãos ainda não soltaram meus braços.

Ainda não abri a mão esquerda. Com a pouca furtividade de que disponho, escondo no bolso a dobradura que sei estar debaixo de meu punho cerrado. Se ele vê, não se importa – se teve a chance de tirar o papel de minhas mãos enquanto apaguei, não tem porque fazê-lo agora.

– O que tá... acontecendo...?

Viro-me, brusca e desajeitada, na direção das mãos, que me seguram novamente antes que eu dê com a cara no chão, imprensando-me contra seu ombro.

– Fique quieta – murmura – Está forçando os ossos que quase quebrou.

A pontada de dor retorna, como que para confirmar a afirmação, junto à sensação tardia de minhas costas atingindo a parede ladrilhada do templo antes de tudo escurecer. Mordo os lábios e tento me acalmar.

Toco a boca, toco os dentes da frente, e tento lidar com o impacto de todas as memórias rasgadas sozinha. Agora toco as têmporas, tentando desbloquear algum fragmento esquecido pelo delírio com a pressão dos dedos. Tudo o que consigo é pensar ainda mais naquilo que já sei.

O encontro na Game Mania ganha novos contornos. As implicações de todas as recomendações de Alice parecem pesadas demais, e eu seria capaz de gritá-las por aí, apenas para convencer a mim mesma de que não é mentira. De que, por míseros momentos que eu simplesmente não soube aproveitar, Alice, a pessoa que tenho procurado incansavelmente desde que fui jogada aqui, esteve ao meu lado. Tornei-me muda para guardar o segredo de seu esconderijo, e Alice sabia que eu o faria desde o início. Até repetiria, se precisasse.

Desisto de tentar disfarçar minha ansiedade da figura de trás. Também não tento me virar. A essa altura, eu já deveria saber o que está acontecendo.

E pensar que eu cogitei seriamente que a sombra nos assombrando pertencesse à minha melhor amiga.

Respiro fundo mais uma vez.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora