Quente.
Vermelho-escuro.
Não preciso abrir os olhos para saber que a sombra da véspera nos encontrou. A presença está ali e não se move.
Tusso algumas vezes e tento enxergar além das nuances de vermelho do teto pedregoso – frestas do outro lado do espaço deixam escapar a pouca luz que as ilumina. Fragmentos de conversas, palavras sem nexo, imagens e lugares se misturam em meus pensamentos, desorientando-me, quase tonta. Meu corpo se levanta devagar, moroso, desrespeitando meus comandos.
Mãos firmes me amparam antes que eu escorregue sob o peso de meus braços flácidos. A sensação é a de dejà vu.
– Parece que você foi a primeira a acordar – comenta uma voz monótona e desagradavelmente familiar.
A alguns metros do outro lado da minúscula e sufocante caverna em que estamos, Link jaz desacordado. Há bandagens e curativos encardidos encobrindo seus braços e peito, o que me leva a procurá-los (e achá-los) em mim também. Quando finalmente consigo me recostar, as mãos ainda amparando meus braços com cuidado, uma fisgada ataca minhas costas.
É como se todos os gatilhos se ativassem de uma vez só.
Bailarina, chave, Helena, origami, sombra, Alice.
Alice.
Amparo-me entre uma das pedras sobressalentes e tento controlar minha respiração errática com algumas inspirações profundas.
Inspire.
Expire.
Viu como é mais fácil assim?
Inspire.
Expire.
As mãos ainda não soltaram meus braços.
Ainda não abri a mão esquerda. Com a pouca furtividade de que disponho, escondo no bolso a dobradura que sei estar debaixo de meu punho cerrado. Se ele vê, não se importa – se teve a chance de tirar o papel de minhas mãos enquanto apaguei, não tem porque fazê-lo agora.
– O que tá... acontecendo...?
Viro-me, brusca e desajeitada, na direção das mãos, que me seguram novamente antes que eu dê com a cara no chão, imprensando-me contra seu ombro.
– Fique quieta – murmura – Está forçando os ossos que quase quebrou.
A pontada de dor retorna, como que para confirmar a afirmação, junto à sensação tardia de minhas costas atingindo a parede ladrilhada do templo antes de tudo escurecer. Mordo os lábios e tento me acalmar.
Toco a boca, toco os dentes da frente, e tento lidar com o impacto de todas as memórias rasgadas sozinha. Agora toco as têmporas, tentando desbloquear algum fragmento esquecido pelo delírio com a pressão dos dedos. Tudo o que consigo é pensar ainda mais naquilo que já sei.
O encontro na Game Mania ganha novos contornos. As implicações de todas as recomendações de Alice parecem pesadas demais, e eu seria capaz de gritá-las por aí, apenas para convencer a mim mesma de que não é mentira. De que, por míseros momentos que eu simplesmente não soube aproveitar, Alice, a pessoa que tenho procurado incansavelmente desde que fui jogada aqui, esteve ao meu lado. Tornei-me muda para guardar o segredo de seu esconderijo, e Alice sabia que eu o faria desde o início. Até repetiria, se precisasse.
Desisto de tentar disfarçar minha ansiedade da figura de trás. Também não tento me virar. A essa altura, eu já deveria saber o que está acontecendo.
E pensar que eu cogitei seriamente que a sombra nos assombrando pertencesse à minha melhor amiga.
Respiro fundo mais uma vez.
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A Garota que Nunca Existiu
FanfictionEm um esquecido subúrbio na zona norte do Rio de Janeiro, Alice, uma fã fervorosa da franquia The Legend of Zelda, desaparece sem deixar rastros. Embora esteja ciente de que vive em uma cidade em que casos como este não passam de páginas de jornais...