Capítulo 29 - Kensho

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"Não resta um único fio

É tração

Não sou nome, só direção

Meu lugar são dois mundos em colisão".

(Baleia – Volta)

Olho para cima e não sei que horas são.

Não sei há quantas horas encontrei coragem para quebrar o olhar de Helena e encarar o teto azul-claro, com os adesivos de estrelas e cometas que brilham no escuro – aqueles que meu pai colocou quando eu tinha 8 anos e enfiara na cabeça a ideia de que seria astrofísica quando crescesse. Paralisada, deixo que todos estes impulsos desconhecidos corram selvagens como veneno por minhas veias.

Tentei fugir de todas as formas possíveis – pela porta, o mais lógico. Fechando os olhos. Tapando os ouvidos. Dormindo.

Mas eu estava à flor da pele, tão descarnada quanto Helena, e nada, nem ninguém pôde me proteger de boiar junto com ela em sua poça de fezes e mijo. A estática, o silêncio, seus olhos embriagados cravados nos meus derrubaram-me facilmente. Encarei seu rosto deformado por meus punhos de todos os ângulos possíveis. Encarei meu rosto refletido em seus olhos líquidos de todos os ângulos possíveis.

Quando você bate em mim, Cecília, não está me machucando. Está ferindo a si própria.

Quis vomitar.

Helena dorme de olhos abertos. Paralisada como uma estátua, o sorriso permanente atravessa seu rosto como que rasgado a facadas. Imóvel como um cadáver. Olhar para ela – olhar para mim – é ser atacada por um terror que atravessa a alma e volta.

Como uma flecha.

O zumbido das moscas que pousam em sua pele dilacerada se confunde com o zumbido do próprio silêncio. Elas pousam em mim também, mas nada faço para espantá-las. Não faço nada senão respirar.

Não choro, não gemo, não grito. Em algum momento toda aquela agonia me esvaziou e eu afundei em um lugar escuro, alheio, isolado. Não consigo sentir mais nada.

E então vou embora para aquele lugar quente e seguro, onde as lembranças resplandecem como cristal, e ouço sua voz de criança prestes a entrar na puberdade.

"Você já teve vontade de fugir pra algum lugar e nunca mais voltar?"

E então, a resposta.

"Várias vezes, Edgar, várias vezes. Mas fugir nunca foi a solução".

Mas fugir nunca foi a solução.

Nunca foi.

Nunca foi.

Nunca foi.

E eu acordo, sem nunca ter adormecido.

Aos poucos, volto à superfície, as palavras reverberando em meus ouvidos como um mantra desconhecido. Muito lentamente, pisco os olhos, alongo as mãos, mexo os pés, estico os dedos. Toco o céu da boca com a ponta da língua.

Preciso saber que ainda estou aqui.

Preciso saber que não vou fugir de novo.

Acima de tudo, preciso saber que esta casa é minha e sempre será.

Levanto-me com a mesma lentidão com que despertei e engatinho pela superfície imunda de excrementos até a saída. Estranho a sensação da lajota em minha pele, do peso do tronco sobre os joelhos, como se este corpo fosse novo. Como se, durante meu sono acordado, eu tivesse trocado de pele, revelando uma nova casca por debaixo da antiga.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora