Capítulo 26 - Letargia

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– Tudo bem – respondo, sentindo minhas pálpebras pesarem – Não me deixe dormir.

***

Você nunca sobreviveria aqui se não fosse por mim.

A ironia é que não preciso de você.

Este corpo é meu.

MEU.

***

Flecha apontada em direção ao alvo. Arco esticado. Respire fundo. Não hesite. Solte. Esta é uma cena que já repeti milhares de vezes desde os doze anos.

A diferença é que já não se trata de um círculo vermelho pintado no fundo do ginásio ou qualquer coisinha do gênero, mas sim de uma criatura que vive e respira, do tamanho de um minotauro, se existisse um. Link e Navi chamam-no de Moblin, guardião da entrada do Templo contra invasores. A tarefa é simples: só preciso matá-lo, nem mais, nem menos.

Ou matá-los, no caso, já que esta floresta desembocou em um gigantesco labirinto repleto destas pragas escondidas entre o mato e os muros feito ervas daninhas. Desnecessário dizer que, aos dezesseis anos, não estou exatamente familiarizada com a ideia de matar. Talvez ninguém realmente se imagine fazendo algo assim até o momento em que precisa fazê-lo.

Enquanto engulo em seco, decidida a protelar minha insólita tarefa por mais alguns segundos, Link atinge um daqueles bichos no pescoço desprotegido usando uma garra metálica retrátil semelhante a um arpão – sabe-se lá como a arranjou. Ele já errou o alvo algumas vezes, mas conseguiu se esconder por trás das paredes verdes quase que imediatamente, ou, pelo menos, muito antes que o Moblin sequer percebesse que fora atacado. Tudo sairia perfeitamente se a corrente que liga o arpão ao resto da arma não se estendesse a apenas um metro, impossibilitando Link de atacar a longas distâncias. Uma flecha, no entanto, pode ser lançada de qualquer lugar. Se for envenenada, como no caso das Ofídias, melhor ainda.

Seguindo a lógica, após anos praticando numa quadra de esportes, sem contar o treinamento de Impa, deveria ser fácil para mim manter uma postura equilibrada ou simplesmente manter o controle. Mas não. Meu corpo treme, frio e febril, sobre a pele suada, sem contar a dor de cabeça contínua por conta do esforço da véspera e privação de sono, aumentando quando forço a vista para localizar o alvo. A sensação de enjoo sobe e desce, quente e indesejável, pelo fundo da garganta.

Nunca matei ninguém.

– Moblin à direita se aproximando – sussurra Navi em meu ouvido, alheia ao meu marasmo. A fada serve a nós como uma espécie de alça de mira, pois é pequena e pode voar próxima ao alvo sem ser percebida. Ela estava com Link no início, mas ele logo desapareceu em meio aos muros cobertos de hera, imerso em sua tarefa, deixando claro quem realmente precisava daquela ajuda – Tá vendo a cabeça bem ali? Tá desprotegida.

O animal, que mais se parece com um cachorro gigante, aproxima-se por trás do muro como um guarda imponente, o corpanzil marrom de quase dois metros coberto por uma armadura de ferro que, tragicamente, não lhe protege os braços ou as pernas. Quis o destino que também não usasse elmo, deixando a nuca completamente exposta afora um pequeno capacete redondo de couro cobrindo o topo da cabeça. Armado de uma lança com, no mínimo, o dobro da altura, a criatura marcha de um lado para o outro em linha reta, da parede mais próxima até uma vala aberta perto da parede oposta que, pelo cheiro insuportável que exala, deve estar repleta de cadáveres putrefatos flutuando no fosso. Por um momento, vejo meu corpo afundando inerte na água suja tingida de vermelho, as bolhas subindo à superfície e estourando sem ninguém ver ou se importar.

Respire, respire.

Meu instrutor costumava falar a respeito de alvos móveis de tempos em tempos, sobre tudo ser uma questão de previsibilidade, pressentir a trajetória do objeto antes que ele mesmo a efetuasse. Em um segundo, ele está lá. Em outro, ele não está. Simples assim.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora