Capítulo 6 - Through the Looking Glass

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Aperto e estico os dedos de minhas mãos, testando os músculos e articulações, anestesiados pelo desuso. Estendo o braço direito em direção ao céu, uma fenda sangrenta enegrecida pelas nuvens.

Com os dedos, toco o ar denso e estático. Quase sou capaz de prová-lo, apenas para sentir o gosto espesso de sal e ferrugem na ponta da língua. A atmosfera é sufocante e claustrofóbica.

Acostumando-me gradualmente com o ambiente, tento levantar do solo, que percebo ser fundo e pinicante. Grama, penso. Iço meu corpo com as mãos e toco a fina folhagem que recobre a terra. É mato seco, morto, de outras estações, corroído pelo ar tépido.

Quando finalmente tiro os olhos do céu e vasculho ao redor,  pânico cresce em minha espinha.

Isso não pode ser real.

Estou em um campo aberto, de aparência quase desértica, salvo por algumas árvores situadas ao longe. Grama amarelada recobre toda a extensão do campo até a linha do horizonte. Ao leste, vejo uma imensa cadeia de rochas contornar a paisagem desolada, encontrado seu pico em uma montanha gigantesca, com um anel de nuvens acima do cume, penetrando o céu escarlate.

Também ao leste, observo, com pouca acurácia, o curso de um extenso rio recoberto por uma densa mata ciliar seguindo, como uma veia, o contorno das rochas. Depois de observar com cuidado, noto que há uma ponte conectando a cadeia ao resto do campo, acima do rio.

Percebo, ao norte, um padrão ligeiramente diferente da formação montanhosa. Forço meus olhos até conseguir observar a anomalia de forma satisfatória, que logo percebo serem muros. Uma fortaleza de pedra, para ser mais exata.

Conforme minha mente readquire coerência e livra-se dos resquícios do sono, o terror cresce, junto a uma certeza que se torna mais clara a cada minuto.

Isso é real demais para ser um simples sonho.

Com o coração acelerado, afundo os dedos na grama espessa, até sentir a terra seca e infértil embaixo, com nitidez, enquanto minha mente tenta assimilar atônita tudo o que vê. Volto meus olhos para o céu rubro novamente.

Os acontecimentos das últimas horas varrem minha cabeça em questão de segundos.

Onde estou?

Lembro-me dos gritos desesperados de Thalia.

Lembro-me dos dois homens.

Como cheguei aqui?

A mensagem de Alice. A tela de Ocarina of Time. A pancada dolorosa na base do crânio.

"Press Start".

NÃO!

Isso não pode ter acontecido, é impossível! Tudo ao meu redor é um atestado da impossibilidade deste lugar: o manto vermelho do céu, a grama morta não decomposta, o anel de nuvens circundando o cume da montanha ao leste.

Onde estou?

Onde estou?

Certamente não no Rio de Janeiro, não mais. Há algo de muito errado neste lugar, uma energia tóxica que parece sugar toda a vida daqui, que me faz querer fugir, mas para onde? Para onde?

Como saio daqui?

Pela primeira vez desde que acordei, presto atenção em minha aparência e vejo que ainda uso o moletom preto da véspera, as calças jeans puídas, salpicadas de terra e imundície e meus tênis de caminhada, que não parecem melhores. Abaixo lentamente o capuz.

Ouço um trovão ribombar ao longe. Como se não bastasse meu completo estado de desorientação, preciso encontrar um abrigo contra a chuva, e rápido. As nuvens gradualmente encobrem o céu carmesim, escurecendo-o ainda mais.

A Garota que Nunca ExistiuOnde as histórias ganham vida. Descobre agora