Narrador POV
- Acho que agora vem a parte mais difícil, né? – Camila perguntou receosa.
- Eu diria que ela já passou. – Lauren respondeu, correndo os dedos pelo braço nu da menina. –Meu maior medo era sua mãe.
- Mas os seus pais... – Camila procurou palavras para explicar a Lauren o que ela estava tentando dizer. – Quer dizer, o que eles vão achar de mim? Eu não sou exatamente o tipo de garota que... – Lauren interrompeu, revirando os olhos.
- Para com essa porra, Camila. – Falou séria. – Eu já te disse que isso não importa.
- Para você com isso, Lauren. – Camila não parecia nem um pouco feliz com o rumo da conversa e se levantou do colo de Lauren, começando a andar pela sala. – É muito fácil para você falar que não importa, que não faz diferença, que não isso, que não aquilo. Você não tem a mínima ideia de como eu me sinto, ninguém tem.
- Princesa, não fala assim. Eu só quero ajudar você.
- Ajudar o que? A única pessoa que pode me ajudar sou eu mesma, mas acredite, isso não é lá uma tarefa muito fácil. –Camila estava brava consigo mesma.
Camila sempre se sentiu "confortável" dentro da sua condição. Ela estava acostumada a viver daquela forma, era a única forma de vida que ela conhecia. Nunca havia tentado mudar, ela não tinha motivos que a fizessem querer melhorar. Nem mesmo sua mãe, visto que respeitava e já havia desistido de forçar Camila a tentar começar algum tipo de tratamento, ela sabia que não daria certo, não se a filha não quisesse.
O problema disso tudo era que agora ela tinha um motivo. Motivo esse que a encarava como se não soubesse o que fazer, porque, falando daquele jeito, realmente parecia que não havia nada a ser feito. Lauren se sentia mal por não haver nada a seu alcance, apesar de saber que poderia fazer qualquer coisa que Camila pedisse, não parecia... Suficiente.
Agora, Camila tinha que se forçar a tentar ser alguma coisa que ela não era, não como uma segunda personalidade, um alter ego ou qualquer coisa do tipo, mas exatamente a pessoa que ela deveria ser, e a menina não sabia lidar com isso. Isso tudo não a dava vontade de fazer nada diferente em sua vida e, para piorar, ela ainda se sentia confortável em sua condição, apenas com alguns ajustes.
O que Camila não percebia, mas Lauren e Sinu sim, era que Camila já havia feito grandes avanços, ainda que não enxergasse isso. O que ela tinha com Lauren, era um tipo de conexão que ela não achou que iria estabelecer nunca, com ninguém, em toda a sua vida e sim, aquilo, com certeza, se tratava de um grande avanço. Ela só precisava transmitir tudo isso a outras pessoas, o problema era que a menina não sabia como utilizar essa ponte aparentemente inexistente entre ela e o resto do mundo.
As pessoas eram cruéis. A maioria das pessoas não se importava com os sentimentos de Camila, ninguém nunca se importou e aquilo a fazia ter repulsa das pessoas normais, embora ela soubesse que toda a generalização era uma falácia e ela não poderia falar por toda a humanidade. Lauren era uma prova de que as pessoas podiam ser diferentes, mas seria a sua família outro enorme conjunto de exceções? Camila daria essa sorte, novamente?
Ela não sabia.
E aquilo a fazia ter medo da família de Lauren, medo do que eles poderiam achar dela. Medo da própria reação, quando se visse cara a cara com eles. Camila não podia sair correndo deles, não parecia justo, não parecia – e não era – normal.
- Fica calma. – A voz de Lauren saiu baixa, mais rouca do que o normal. – Não tem nada de errado com você, amor, é só... – Camila a interrompeu.
- Quer parar de dizer isso? Você está sendo hipócrita! – Camila não gritava, apesar de desejar fazer tal coisa. Ela apenas aumentou um pouco o tom de voz, deixando Lauren meio assustada. – Tem um monte de coisas erradas comigo, você é cega, por um acaso? Não adianta dizer coisas legais só para fazer eu me sentir melhor, você tem que parar com isso.
- Amor... – Lauren tentou recomeçar a falar, mas Camila, aparentemente, só conseguia ouvir a si mesma e ao seu subconsciente que não parava de recitar o quão diferente ela era, o quanto os pais de Lauren iriam odiá-la, esfregando todas essas proporções em seu rosto e nem mesmo a deixando pensar direito. Camila estava tão atordoada que nem ao menos conseguia falar.
- Isso nunca vai dar certo. – Camila deixou as palavras saírem com a conclusão que, por hora, parecia ser final. Palavras que cortaram ambas.
- O que você... – Lauren deixou as palavras morrerem tão baixo quanto elas começaram a sair. Parecia que a sua voz vinha do meio de sua garganta, era como um fio bem fino que havia sido rompido.
Desistiu de falar mais alguma coisa quando Camila saiu correndo e subindo as escadas com pressa, batendo a porta de seu quarto com força. Lauren não moveu um músculo que indicasse que ela iria atrás dela, sabia que a menina precisava de um tempo para pensar e iria respeitar tal coisa.
"O que você quis dizer com isso?" era o que Lauren queria perguntar, de fato. Mas Camila parecia muito confusa e Lauren sabia que não se fazia perguntas importantes em momentos confusos. "É assim que as pessoas costumam foder com tudo", afirmou para si mesma e se sentiu aliviada por não ter perguntado porcaria alguma.
Mas Lauren ainda tinha medo de que Camila estivesse desistindo delas duas. Ela sabia que não suportaria tal coisa, mas, se fosse decisão de Camila, ela iria ter que aceitar. O quão ridículo seria acabar com algo que nem ao menos começou?
Então ela sentiu raiva, cerrou os punhos e foi para seu quarto.
Lauren precisava quebrar alguma coisa.
A primeira coisa que Lauren avistou foi um vaso que estava em cima da sua cômoda, uma porcaria de vidro que sua mãe havia lhe dado quando ela fez quatorze anos – e, nessa época, Clara realmente acreditava que a filha era hetero –, dizendo que quando ela namorasse, poderia por as flores que o menino lhe desse ali. Lauren nunca disse, mas ela odiava aquela porra de vaso e também odiava os meninos, então, qual sentido que havia em guardar aquela merda?
Ela sabia que iria ter que limpar os cacos, mas foda-se. Pegou aquele objeto inútil e tacou na parede com toda a sua força, desejando que aquilo fosse a parte de Camila que cismasse em dizer que elas eram diferentes e que, a partir de agora, ela não existisse mais. Observou o vaso se espatifar em inúmeros pedaços e se espalhar pelo piso de madeira, achando que sua raiva fosse se dissipar.
Não dissipou.
Então Lauren riu. Riu sarcasticamente de si mesma, se sentindo a mais ridícula das criaturas. Ela nunca quis namorar, por dois motivos. Um: Nunca achou ninguém que fosse suficientemente bom. Dois: Sempre achou que os namoros tivessem mais drama do que felicidade.
Seu riso aumentou, tomando quase um tom histérico. Não fazia nem uma maldita hora que ela havia pedido Camila em namoro. Só deu tempo de elas entrarem em casa, Lauren roubou-lhe alguns beijos e logo elas começaram a discutir.
Não estava nem a uma hora em um relacionamento sério e já sentia como se tivesse levado um tapa na cara, embora acreditasse que poderia resolver tudo quando Camila estivesse mais calma. Ela tinha que acreditar nisso, porque não podia mais enxergar a sua vida sem a menina. [...]
- Lauren? – Sinu bateu na porta de seu quarto. – Você está ai?
- Onde mais eu estaria? – Respondeu mal humorada e Sinu entendeu aquilo como um convite nada simpático para que ela abrisse a porta.
- Tá tudo bem? – Sinu perguntou vendo os cacos de vidro espalhados pelo chão e Lauren assentiu. – Tá tudo bem?
- Eu já disse que está. – Respondeu sem paciência e Sinu se sentiu pisando em ovos enquanto driblava os cacos de vidro para chegar à cama de Lauren, onde ela se encontrava preguiçosamente estirada.
- Não me parece que está tudo bem. Camila está desenhando no quintal e seus dedos apertam o lápis com tanta força que eu posso te jurar que ele vai quebrar em breve e ela se recusou a me dizer ao menos um "boa noite". Você está jogada na cama com essa cara de enterro e esse humor horroroso de quem tão transa há anos e tem vidro no chão do seu quarto. Desembuche.
- Eu não sei... – Sinu interrompeu.
- Eu sei.
- Então porque tá me perguntando? – Lauren levantou uma sobrancelha.
- Tá na cara que vocês brigaram. Eu só quero saber o motivo, porque dependendo do que for, se a culpa for sua, eu corto a sua cabeça com um machado, mando uma carta pedindo desculpas para a sua mãe e fujo do país com a Camila. – Lauren revirou os olhos.
- É que eu a pedi em namoro hoje de tarde e... – Sinu interrompeu.
- Milagre.
- Enfim. Depois a gente começou a conversar sobre contar para a minha família e ela surtou, disse que não iria dar certo e me largou sozinha na sala. – Lauren trincou o maxilar.
- Eu acho que você devia ir falar com ela. Camila nunca passou por nenhuma situação parecia e é normal que ela se sinta confusa e insegura. Cabe a você mostrar para ela que não é tão ruim assim.
- De que lado você está, afinal?
- Do lado que faça vocês duas felizes. Olha, só porque eu adoro te sacanear e deixar vocês duas constrangidas, isso não significa que eu não queira que vocês duas fiquem juntas. E, bom, ninguém disse que ia ser um mar de rosas, né? – Lauren assentiu.
- Eu sei tia, eu sei. Só queria que houvesse um meio eficaz de a Camila entender de uma vez por todas que eu não me importo com o fato de ela ser "diferente", que isso só a torna mais especial para mim. Mas ela nem deixa eu falar direito, parece que o que eu falo entra por um ouvido e sai pelo outro. Eu não sei lidar com isso.
- Camila é assim. Se você quer mesmo levar isso adiante, vai ter que aprender. – Sinu aconselhou, querendo poder fazer alguma coisa para ajudá-las.
- Eu sei que vou. Não consigo mais me afastar dela, então... – Concluiu, com pesar. Sinu assentiu e as duas ficaram um tempo em silêncio.
- Não que eu ache que alguém vai comer, mas vou fazer o jantar. – Sinu se levantou e apontou para os cacos de vidro do chão. – Limpa isso, hein.
- Pode deixar. – Lauren respondeu, vendo a tia sair do quarto depois de piscar para ela.
Logo em seguida ela se esparramou na cama com apenas uma certeza:
Ela não ia deixar as coisas assim com Camila. Não mesmo.