Lava, fogo fátuo.
Ilusão.
Estou de volta.
Encaro janelas em chamas
Olhos de chamas
Âmbar translúcido
Seu corpo serpenteia abandonado
Dragão que se dissolve e retorna em carne viva
Volvagia é seu nome.
Fada e herói escolhem se esquecer de mim no fogo cruzado
Hesitar é sentença de morte
Se vejo o futuro, protejo o presente
Minhas mãos corroem de inexistência
A trama jamais será contrariada
E que assim seja.
***
Helena não está em casa, e não sei bem o que pensar disso.
Ando pelos cômodos do apartamento como se ele não me pertencesse. As luzes continuam desligadas no corredor, mesmo que já tenha anoitecido lá fora, e a brisa fria balança o quadro de meu pai acima do sofá. Esta casa é minha, os ventos não.
– Alice, eu tô aqui.
Voltei para cá quase rezando por um acidente, um milagre de tentativa e erro. Vim avisá-la de Sheik, de tudo o que me dissera, mas não entendo... quem é Sheik mesmo?
A cada passo, um novo tipo de esquecimento.
Sento no sofá e ligo a televisão. Não entendo as imagens, manchas tremidas em vermelho, preto e azul. A câmera não ajuda, tampouco a legenda "Imagens de cinegrafista amadora" abaixo da filmagem. Gritos abafados pelo péssimo microfone (de celular, tenho certeza) irrompem das caixas de som, um gutural e outro mais agudo. Seja lá quem estiver gravando, contudo, não emite som algum senão o ruído pesado da própria respiração.
Mudo de canal.
A filmagem caótica dá lugar a uma sala de espelhos, daquelas que a gente geralmente encontra em parques de diversão. Seguindo a câmera, observo enquanto os espelhos se derretem, lentamente escorrendo pelo chão seco e revelando um céu nublado antes oculto pelo vidro. O cinza quase transparente das águas pegajosas se confunde com as nuvens carregadas do céu. Ao longe, uma árvore desfolhada se eleva de um montinho de terra seca – abaixo, um reflexo perfeitamente nítido e simétrico do tronco estéril, como se a água quieta ocultasse uma segunda dimensão sobre si. Sombras começam a se movimentar pela superfície, chapinhando pelo chão. Imagem alguma se forma debaixo de seus pés.
Mudo de canal.
A imagem agora é a de meu quarto, e a câmera torna a tremer. Aperto o controle com força quando a silhueta de minha mãe se revela por trás da porta.
– Toma todo o leite que deixei aí, vai te ajudar a dormir – A voz é tão clara quanto me lembro – Outra coisa: não importa o quão boa atriz você seja, seu irmão já percebeu.
Chiado na gravação, que retorna em um loop estranho de câmera (o que lembra uma fita sendo rebobinada) até que focalize novamente. Minha mãe continua na mesma posição, embora já não use as mesmas roupas.
– Cecília... tem certeza de que tá tudo bem com você? – Algo em sua voz luta para sair, mas ela reprime.
A pessoa por trás da câmera logo responde:
– Que Cecília?
A voz é minha.
– Desliga isso agora.
Alice surge por trás do corredor mal iluminado. A TV desliga e o controle escapa de minha mão suada, espatifando-se no chão.
– O que tá fazendo aqui?! – Seus dedos cutucam a cutícula das unhas compulsivamente, um hábito que possui desde criança – Devia estar lá em cima!
Se não disser algo neste momento, não direi mais nada. As palavras evaporam quando surgem, fugindo de mim.
– Não controlo quando venho pra cá – Evito olhá-la nos olhos.
A garota se aproxima de mim devagar, e sua silhueta debaixo da luz baça é quase uma aparição fantasmagórica. Vejo-a em um vestido branco, os longos cabelos escuros trançados em flor, seus olhos castanhos escurecendo, e ouço os gritos de um enterro prematuro – em uma outra vida, em um outro lugar.
Pisco e o lampejo desaparece.
Alice ainda usa o longo vestido da véspera, um pouco mais encardido, até. Os pés, descalços e imundos, se escondem debaixo de uma bainha rasgada já desfiada.
– Tá mentindo – responde, ríspida – Tu deixou de tomar o remédio, não foi?
Fito meus pés.
– Calça um chinelo – chio – Tá frio o chão.
– Cecília, eu tô falando sério! – insiste – Cê não devia estar aqui, vai acabar se matando! Nos matando!
Levanto o rosto e a encaro. Minha cabeça pesa quando o faço.
– E o que você faz aqui?
Alice olha para os lados atônita, em busca de um ponto de referência.
– Cê ao menos sabe quem tá no seu lugar nesse exato momento?!
Escondo as mãos debaixo dos bolsos da túnica como fiz tantas outras vezes. Meus dentes (dentes?) tremem debaixo da boca. Quente, frio, frio, quente.
Frio.
– Responde a droga da pergunta que eu te fiz e calça o chinelo – rosno, sem saber exatamente o porquê.
O que estou fazendo aqui mesmo?
Estou esquecendo.
– Cecília, volta pra cima!
Desamarro os cadarços das botas e retiro as meias improvisadas de cota de malha e lã. Jogo tudo a seus pés.
– Coloca o sapato – respondo de má vontade – Não sei como voltar, mas te coloco pra fora nesse exato momento se eu quiser.
Ela apanha as botas e as meias com relutância.
– Você não vai – diz, enquanto amarra os cadarços de qualquer jeito, em contraste aos laços organizados que sempre faço – Agora é o seu pé que vai esfriar.
Dou de ombros.
– Não importa – não sei para qual de suas afirmações eu respondo – Eu... eu vim aqui pra te dizer algo.
Alice transfere o peso de uma bota a outra.
– Dizer o quê?
Mordo a boca.
Dizer o quê?
Entender o que pretendo neste lugar, uma vez que chego, é como controlar os próprios sonhos. Mas o que sei a respeito? Nunca mais sonhei.
Quando foi que deixei de sonhar?
Olho para minhas mãos úmidas, frustrando-me a cada minuto. Soco o sofá.
– Eu não... - forço até que saia algo – Eu não... lembro...
Ela cruza os braços.
– Sugiro que descubra logo – rosna, controlando a voz para que não grite – Elas vão me encontrar aqui.
– Elas quem?
– Palavras têm poder, nomes têm poder – responde – Seus dentes e sua língua sabem disso. Você também.
Fito o teto, subitamente cansada de tentar controlar a situação. Corro as mãos pelos cabelos, deito-me e fecho os olhos.
– Já te dei as botas, pode correr daqui se quiser – suspiro – Quero dormir e depois me lembrar pra quê te chamei aqui.
– Cê não tá entendendo! – vocifera – Você veio pra cá num momento horrível, não tá seguindo as regras! Veio me procurar e agora não sabe o porquê?!
Abro os olhos e Alice estremece da cabeça aos pés, o rosto vermelho como nunca o vi, os lábios pressionados em uma linha reta.
– Diz alguma coisa! – grita.
Encaro-a e seu rosto é engraçado, perde o sentido. Parece uma sopa de linhas em uma tela vazia. Tudo cansa.
– A casa é minha – balbucio – E você ainda não disse o que faz aqui.
Seus braços se fecham em torno dos ombros arranhados. Sua resposta é quieta.
– Link tá acordado. Tive que fugir quando cê caiu aqui.
– E... – respiro fundo ao fitar os machucados. Por quanto tempo ela pensou que poderia escondê-los debaixo do uniforme da escola? – E...eu...?
A garota toma minha mão bruscamente e a segura contra as suas, tão frias quanto as lajotas do piso.
– Cê se lembra de alguma coisa que eu te disse da última vez que a gente se viu?
Balanço a cabeça em negativa.
Ela suspira.
– Ai, Deus... - ela ofega – Tenta se lembrar, por favor! Sei que tem algo pra me dizer, ou não teria voltado pra cá.
– Será...? – reprimo um bocejo – Talvez eu só queira deitar em algum lugar.
Um redemoinho dentro do outro, é assim que as luzes piscam e giram acima dos olhos. O rosto contorcido de Alice é uma máscara tragicômica, e eu riria de sua cara se não me sentisse tão pesada.
Cecília flutua na piscina rasa onde seus sonhos moram.
Cecília... Cecília...
Quem é?
Sabe quando você repete o próprio nome tantas vezes que ele deixa de ser seu e se torna outra coisa?
Este nome não é mais meu...
Alice solta minha mão e afunda o rosto nas palmas, abafando um soluço arranhado. Frenética, ela tateia pelo chão gelado procurando por algo. Por que o estresse? A lua parece tão bela lá fora, e a brisa é tão fresquinha...
Ela apalpa o controle e liga a televisão naquele canal de que não gostei. O lugar é o interior de uma montanha, e a "cinegrafista amadora" está de volta, levantando as mãos brilhantes acima da câmera (quem está segurando?!). Explosões escapam de seus dedos e atingem o dorso de uma gigantesca criatura vermelha zigue-zagando pelo teto. A filmagem treme.
Alice aperta o controle engordurado. Quando se vira para mim, a cor já se esvaiu de seu rosto.
– Ceci – a voz falha – Pelo amor de Deus... aconteça o que acontecer... não fecha os olhos!
Solto um bocejo.
– Quê?
Ela agarra minhas duas mãos desta vez.
– Me escuta! – ela engole em seco – Por favor, por favor, não dorme de jeito nenhum...
O teto torna a girar acima de mim.
– Por... quê...? – pergunto da boca para fora. O soluço reprimido de Alice é um eco distante, distante demais.
– Porque foi Jane quem assumiu o terceiro andar agora, não tá vendo?! – A garota aponta um dedo trêmulo em direção à TV – E ela tá usando aquele poder de novo!
***
Tecidos de consciência viajam líquidos
Pelos poros escuros de dedos enluvados.
Vou protegê-la, menina
Quer queira ou não
Onde o perigo físico duela
Com os fantasmas desvairados do inconsciente.
A fera geme e logo retorna
Dançando em círculos de vertigem
Corpos caem engolidos pelas chamas
Espíritos se alevantam sublimados pelas cinzas.
Vou machucá-la
Não chore
Durma
É para o seu próprio bem.
Flechas e gritos
Arremessados pelo herói em mesma intensidade.
Guarde-nos em um relicário, garoto
Posso roubar-lhe a chave mestra
Tão facilmente quanto ela o concedeu
Lute bravamente e não nos fira.
Seta
Acerta
Céu
Da
Boca.
Se a espada atravessa a garganta,
Minhas mãos se movem por si.
Deixe-me beber de sua existência
Deleitar-me em seu nome
Devorar sua memória
Devorar sua gramática
Sujeito
Substantivo
Nome próprio
Certidão de nascimento
Atestado de óbito.
Afaste-se, menino
Afaste-se, fada
Volvagia será palavra vazia
Volvagia será nada.
Boa noite, Cecília.