A Garota que Nunca Existiu

By WitchGianni

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Em um esquecido subúrbio na zona norte do Rio de Janeiro, Alice, uma fã fervorosa da franquia The Legend of Z... More

Capítulo 1 - The Girl with the Machine Gun
Capítulo 2 - Bronzes e Cristais
Capítulo 3 - Respostas
Capítulo 4 - The Wall
Capítulo 5 - Siga o Coelho Branco
Capítulo 6 - Through the Looking Glass
Capítulo 7 - MK Ultra
Capítulo 8 - Controle
Capítulo 9 - She's lost control again
Capítulo 10 - Presa
Capítulo 11 - Predadora
Capítulo 12 - Interrogações
Capítulo 13 - As pessoas mentem o tempo inteiro
Capítulo 14 - Espelhos distantes
Capítulo 15 - Juramento
Capítulo 16 - Conatus
Capítulo 17 - Remoto Controle
Capítulo 18 - Destinos
Capítulo 19 - Dores do crescimento
Capítulo 20 - Na Estrada
Capítulo 21 - Ultimato
Capítulo 22 - Pela luz dos olhos teus
Capítulo 23 - The boy with the thorn in his side (Parte 1)
Capítulo 24 - The boy with the thorn in his side (Parte 2)
Capítulo 25 - Eco
Capítulo 26 - Letargia
Capítulo 27 - Maya
Capítulo 28 - Véu
Capítulo 29 - Kensho
Capítulo 30 - Existenz
Capítulo 31 - Refúgio
Capítulo 32 - Sublimação
Capítulo 33 - Réplica
Capítulo 34 - Inexorável
Capítulo 35 - Retorno
Capítulo 37 - Prioridades
Capítulo 38 - Autofagia
Comunicado - 29/05/2022
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41

Capítulo 36 - Cruz de estrada

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By WitchGianni


Deixo que meus pés se conduzam sozinhos enquanto ainda não consigo pensar – eles parecem saber para onde vou melhor que eu.

Mordo o pulso a cada pontada no tornozelo esquerdo e não consigo fazer mais que isso. O pânico supera a dor.

Sob meus olhos úmidos, o céu cinzento e o asfalto frio se fundem em uma coisa só. Pisco várias vezes para me livrar da visão, turva e entorpecente, e tento engolir o pesado nó de desespero garganta abaixo. Apenas um alívio de curto prazo até que a sensação absurda de falta de sentido retorne até meu peito e o sufoque contra os pulmões já esgotados.

Foco no contorno incerto dos edifícios abandonados e em nada mais.

Um zumbido incessante perturba meus ouvidos, junto ao som de minhas pisadas doloridas e o assobio do vento. No fundo, temo que sejam todos uma coisa só.

Inspira.

Corre.

Expira.

Corre.

Dor.

Corre.

Helena.

Vai.

Te.

Alcançar.

Corre.

Chegue lá antes dela.

Corre.

Onde?

Corre.

Você sabe bem até onde.

Eu caio.

Tateio o chão em pânico, as mãos trêmulas empurrando e arranhando o asfalto sujo. O solo cede sob meus pés, puxando-me dolorosamente devagar para debaixo da terra. Agito os braços, tentando me sustentar a qualquer custo. Desabo sob o peso de meu próprio corpo.

Não.

Já posso ver você daqui, Cecília!

Não.

O asfalto movediço engole meus joelhos.

Reprimo um grito, e tento fincar as unhas sob o chão novamente. Agachada, deixo que meus dedos agarrem as pequenas pedras misturadas à argamassa da superfície escorregadia. Empurro os braços para trás e iço o corpo para a frente, quase imobilizada. Não consigo controlar outro grunhido dolorido logo em seguida – o som se cospe sozinho.

Eu vou te alcançar! – não consigo me decidir se Helena cantarola ou vocifera – E mesmo se não o fizer, você já está me levando até sua amiga, não percebe? E já terá afundado antes mesmo de chegar. Você não tem escolha nenhuma, está me ouvindo?! Nenhuma!

Não olhe para trás.

Não olhe para trás.

Não olhe para trás.

Não sinto mais nada senão a lufada fria do vento antecipando a tempestade que ameaça e jamais cai.

Viro-me devagar, empurrando o chão com gemidos que decido não mais reprimir. Cuspo saliva escura e, ofegante, levanto o rosto, observando enquanto Helena me alcança com suas passadas arrastadas – nem por isso menos vorazes – pela rua movediça. Placas vermelhas coaguladas e sujeira endurecida protegem seu corpo ainda desnudo como uma armadura decrépita. Não quero pensar em como se livrou das correntes em que Jane a colocou – Helena é uma sobrevivente, no fim das contas. É isso que ela faz.

A substância escura alcança minhas coxas.

Minhas mãos ainda estremecem debaixo do chão arenoso. Restam apenas lágrimas ressecadas em meu rosto e o suor frio escorrendo pela nuca. Afundo, e a respiração acelerada cessa devagar.

Fecho os olhos e lembro-me da última vez em que estive aqui, quando consegui a primeira gravura. Cercada pelo verde, antes que a borboleta pousasse em meu ombro, antes que eu tocasse a chave em minha boca. Lembro-me daquele vazio de compreensão que parecia tão simples de alcançar naquele momento, e que escapara pelos meus dedos com a mesma facilidade.

Já não olho para Helena. Fito o solo que me puxa para dentro de si e decido que não tenho medo do escuro. Talvez não haja muito o que fazer por mim, mas ainda posso proteger Alice.

Uso o pouco vigor que consegui recuperar neste pequeno momento de inércia e puxo meus braços para fora do chão. O empurrão afunda meu corpo na altura dos quadris, mas não importa. Não mais.

O que está fazendo?! – Helena grita, já a alguns metros de mim.

Um líquido pastoso, negro como petróleo, escorre por minhas mãos, secando e engessando rapidamente a pele. Flexiono os dedos freneticamente e limpo os braços nas roupas, tentando me livrar da sujeira a qualquer custo antes que eu perca os movimentos por completo. Constato, aliviada, que a chave não escorregou de minha mão direita.

Eu vou encontrar essa Alice, Cecília – Ela uiva, como se me encorajasse a fugir novamente – Vou descobrir onde ela está, por bem ou por mal!

Respiro fundo e guardo a chave debaixo da língua. Prendo a respiração e abro a boca, deslizando os dedos pelos dentes de baixo em antecipação. Seguro firme e arranco um molar.

Helena certamente pode escutar o urro de agonia da distância em que está.

Helena certamente pode ver quando o dente arremessado em sua direção explode em uma cratera na pista vazia onde afundamos pesadas.

Ás vezes consigo retirar dois, três, quatro dentes de uma vez só e arremessá-los todos para longe. Não penso em hesitar, apenas assumo o piloto automático como já o fizera incontáveis vezes e, quando a dor parece impossível de segurar até o final sem que eu apague, penso no vazio. Palavras articuladas por uma boca saudável têm poder. O silêncio banguela de dentes arrancados à força é perigoso – guarda todos os segredos destrutivos que jamais escaparão dos meus lábios. É assim que caninos e pré-molares explodem quando tocam o chão. Em meus soluços pesados, não preciso olhar enquanto Helena se esquiva com dificuldade das crateras abertas para entender que ela sabe disso tão bem quanto eu.

Mas isso não me impede de olhar.

Sangue quente respinga pelos lábios entreabertos e corrói o asfalto pegajoso. Sangue tóxico de segredos guardados por tempo demais. Isso não é o suficiente para me salvar.

Conforme livro-me de cada dente, acostumo-me com os gritos que precedem os estrondos. Helena agora nada no centro da pista, pelas faixas amarelas apagadas, para longe dos buracos, e seu corpo se mistura à sujeira do asfalto.

Sei que ainda preciso me livrar da última coisa que me aprisiona a este lugar, a Helena.

A substância já me alcança à altura da barriga. Helena acelera as braçadas.

Passo a língua pelas gengivas vazias, dilaceradas de nervos expostos, e engulo a chave junto com o sangue.

O vazio, Cecília. Pense no vazio.

Se tudo der certo, você estará lá novamente.

Fecho os olhos mais uma vez. Vai doer.

Não pode doer menos que isso e o sofrimento será infinitamente maior se você demorar.

O problema não é o que vem agora, penso. É o que acontece quando eu arremessar o último segredo, aquele que até mesmo eu desconheço, para fora da boca.

Com um movimento brusco e seco, arranco a língua com a navalha engessada de minhas unhas.

Arremesso.

Agonia.

Vertigem.

Isso não vai me acertar! – Helena não precisa mais berrar a esta altura, mas insiste em fazê-lo.

Cubro os lábios dilacerados com o que ainda posso mover de minhas mãos, rapidamente sujas em vermelho, e desabo debaixo do piche. Então pressiono os dedos contra as orelhas para não me ouvir gritar alguma coisa grotesca e nojenta que não pertence a mim, mas a alguma criatura primitiva.

Minha boca é um túmulo.

De onde a carne deveria explodir, surge um sedan prata em alta velocidade – o último segredo. Os faróis brilhando contra a rua escura machucam meus olhos, e seus pneus, cantando na pista, queimam-na sem jamais afundar. O rugido monstruoso do motor arranha meus ouvidos já firmemente pressionados. Não consigo parar de gritar.

Cecília! – os urros se misturam, e já não sei quem grita o quê – O QUE VOCÊ FEZ?!

Não poderia responder nem se quisesse.

Helena é a primeira a ser atropelada, seu corpo arremessado violentamente para além da pista, que a engole com rapidez para dentro da escuridão.

Meu peito treme em antecipação.

Preciso ao menos saber quem está dirigindo.

Encaro os faróis e os faróis me encaram de volta até que eu perca a visão.

Não posso morrer aqui não posso morrer aqui não posso morrer aqui não posso morrer aqui não poss-

Ouço apenas o estrondo.

Eu me desintegro em pleno ar, tragada por uma força invisível que aperta os ossos, dilacera os músculos em carne carbonizada, nervos rasgados, e queima em minha barriga. Estou vazando, derretendo, e nunca pensei que todo esse sangue estivesse dentro de mim esse tempo inteiro, ou todos esses ossos ou todo esse líquido amarelado ou toda essa água ou-

Afundo.

Há um homem no banco do motorista.

***

– Shh...

Dor.

Meu peito dispara.

Abro os olhos. Alguma coisa escura estremece acima de mim até que eu perceba ser um osso exposto enegrecido pelo piche. Sou toda vermelho e preto. Viro-me para os lados, agitada e letárgica. Os membros endurecidos não respondem aos meus comandos.

Mãos finas seguram meus braços antes que eu me desequilibre.

– Calma...calma!  Vamos devagar.

Braços amparam minhas costas para que eu me levante devagar e sente. Cada movimento perfura, queima e quando abro a boca em protesto, nada sai.

Cecília, o que você fez?

– É, talvez tu fique um tempinho sem falar, depois de ter arrancado todos aqueles dentes. Mas tudo o que cê precisa fazer agora é me ouvir, então não tem problema – A voz solta uma risadinha triste.

Pisco algumas vezes e enxergo pouco em meio à penumbra difusa de onde estamos. Olhos castanhos elétricos me encaram, cautelosos e apreensivos.

Toda a pressão subitamente cede numa onda gelada de alívio, tão poderosa quanto silenciosa. Abro um sorriso trêmulo e banguela, e não dou a mínima para as gengivas vazias – elas não doem mais.

Debaixo da luz fraca vinda de uma lâmpada com mal contato no fundo da sala, ela esboça um sorrisinho tímido em resposta.

– Sim, cê me encontrou – A menina afaga meus cabelos – Não queria que acabasse desse jeito, mas não tenho nem como te dizer o quanto eu tô agradecida.

Antecipando o que não consigo expressar, Alice abraça devagar meu corpo imóvel, tomando cuidado para não tocar em nenhum membro dobrado em ângulos estranhos - coisas que não quero ter o desprazer de descobrir agora, se puder evitar. Com certa falta de jeito que não lhe é familiar, ela envolve meus ombros em seus braços. 

– Ahn... – O suspiro não é de dor.

Alice me solta.

– Desculpa...

Engulo em seco, mas a garota logo se recompõe.

– Deve estar se perguntando como foi que te encontrei depois daquela confusão toda, né? – ela olha para o lado, pensativa – Aquele carro conseguiu te jogar pra onde você pensou em ir. Imagino que era isso que tu pretendia fazer esse tempo inteiro depois que eu fugi, né? Me encontrar aqui.

Sim, mas não desse jeito, penso em um primeiro momento. Mas espera um pouco... aqui onde?

– Tive que te puxar pra fora daquela coisa nojenta em que cê tava afundando e te trazer pra cá... – Alice pausa ao encarar minha expressão – Peraí, você ainda não percebeu onde a gente tá?

Balanço a cabeça.

Ela se afasta um pouco, e o foco de luz se enquadra melhor em meu campo de visão. Forço a vista cansada: não é uma lâmpada falha como pensei a princípio. A iluminação difusa provém de uma forma quadrada, quase retangular, arredondada nas pontas.

Uma televisão.

Alguns fios brotam da frente do aparelho, descendo até um objeto escuro jogado no chão. Prendo a respiração e levanto os olhos de volta à tela da TV, e tento enxergar algo além dos flashes indistintos. A tela escurece por alguns segundos e ilumina novamente, recomeçando a sequência de imagens. Meus olhos latejam.

A luz enfim se adapta a uma imagem que posso enxergar.

The Legend of Zelda – Ocarina of Time.

PRESS START.

Abaixo, um controle de Nintendo 64 jogado no chão.

– Ei, calma! Calma... – Alice me segura novamente quando quase caio – Shh... relaxa.

Tudo o que posso fazer é arregalar os olhos.

– Sim, Cecília. Nós estamos na Game Mania – diz, após alguns minutos – Bem... não exatamente "A" Game Mania, mas aquela como você se lembra.

Tomo algumas respirações lentas, sufocada como estou pelas palavras apertando meu pescoço. Quero gritar, chorar, qualquer coisa que ponha para fora o que não consigo falar. Alice repousa uma mão em minhas costas e sussurra palavras suaves, como se pressentisse o quanto estou perdida. Sorte dela, não tenho como perturbá-la com falatórios ansiosos.

– Ceci... - ela murmura, as mãos suando frio contra minha pele – Sei que tá perturbada com tudo isso, mas preciso que preste atenção em tudo o que eu te disser. Não tenho muito tempo até que Jane volte do terceiro andar pra cá.

Andares... Helena falara algo sobre terceiro andar. Não posso perguntar.

– Nada do que você viu ou ouviu aqui vai fazer sentido quando voltar – Ela enfatiza as aspas no "voltar" –, e posso apenas rezar pra que cê consiga entender essas mensagens que a sua mente te manda. O seu subconsciente funciona por regras próprias – A tela pisca novamente atrás de nós – Cecília, eu estou e não estou aqui com você agora e cê ainda precisa me achar.

A menina pausa por alguns minutos, o rosto contorcido.

– Não posso ficar em Hyrule, não só porque sou essa coisa sei-lá-o-quê dimensional, mas também porque sei a razão de estarmos aqui e o que querem de nós – Seus braços estremecem – Eu me abrigo na sua casa enquanto cê tá aqui e pode me proteger. Ás vezes na do Link também, mas não sei quanto tempo ainda tenho.

Na ausência de língua, é difícil engolir em seco.

Alice segura meus ombros e me encara com tanta força que sequer me atrevo a desviar o olhar.

– Cê precisa entender que, pelo menos por enquanto, quanto menos souber, melhor. Apenas segue a premonição da Jane e encontra todas as gravuras. Joga conforme as regras, tu não pode fazer muito além disso – Ela suspira, o peito pesado – E você ainda tem aquele poder, Ceci. Sei que é doloroso de usar, mas só confia em mim. Enquanto isso, eu vou dar um jeito de tirar a gente daqui, prometo.

"Tem muita gente, tanto aqui como lá fora, que quer me pegar. Não tenho como saber os motivos de todo mundo além do que já te expliquei, mas você tem que me prometer que não vai deixar nenhuma delas me encontrar aqui dentro, por tudo o que é mais sagrado. Não só Helena. Cê sabe o que a Jane é capaz de fazer, não sabe?"

Seus olhos me inquirem em expectativa.

Assinto devagar.

Testo os movimentos da mão esquerda, o primeiro estímulo que alcança meus nervos além da dor. Lentamente sinto as articulações dos dedos, como cordas gastas prestes a ceder ao toque. Parece levar séculos, mas Alice não se apressa, apesar do pouco tempo que diz ter.

Ela precisa de um juramento.

Ergo a mão devagar, forçando-me a dobrar todos os dedos fragilizados, exceto o mindinho, ainda pintado de esmalte laranja neon já descascado.

Alice sorri e aperta seu mindinho com o meu.

– É agora que a gente se despede – A garota olha para trás, e direção à tela – Não devo te dizer tanta coisa, mas posso te ajudar a descobrir alguns detalhes por si só. Como eu te disse, joga conforme as regras...

Ela me levanta no colo sem esforço, caminhando em direção à TV de tubo do outro lado da sala. Ao redor, cartuchos antigos e caixas de papelão espalhados pelo sótão, como se alguma briga tivesse acontecido ali há pouco tempo. Franzo a testa.

Alice me coloca no chão e oferece o controle do videogame, embora eu não confie em meus dedos para segurá-lo com firmeza.

– Só lembra que essa casa ainda é sua, tá? – sussurra, antes de beijar minha testa – A gente vai se ver de novo, Ceci. Essa é minha outra promessa.

Uma borboleta de origami escapa de dentro da televisão e pousa no ponto em que Alice beijara, mas não presto atenção. Não tiro os olhos das letras vermelhas abaixo do título do jogo.

Press Start, é o que dizem.

Press Start, é o que faço.

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