"Se as portas da percepção se desvelarem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita."
(William Blake)
Luzes, luzes finas.
Transpassando as retinas até os confins da consciência.
Ouço os risos de escárnio de quatro almas atormentadas
Levem-me até onde não posso dizer
Levem-me até onde a menina não pode alcançar
Levem-me até onde devo estar.
***
É noite debaixo das paredes imponentes do Templo da Floresta, repletas de trepadeiras, de ar tão puro quanto uma biblioteca empoeirada. Além dos músculos doloridos debaixo das roupas suadas e cobertas de imundície, um arranhão arde em meu braço esquerdo, advindo de uma briga com dois lobos que guardavam a segunda entrada do lugar, como se não bastasse a legião de Moblins do lado de fora. Link também não está em sua melhor forma (se é que um dia já estivera), andando com dificuldade graças a uma mordida superficial na coxa, que seria ainda maior se eu não tivesse atirado no momento certo e quase perdido o braço direito no processo. Aquelas criaturas levaram o melhor de nós e, por mais que o fraco sol de fim de tarde ainda brilhe do lado de fora, a penumbra lançada pelas luzes difusas no centro do templo arde em meus olhos e me faz querer cair de joelhos.
Mas não quero dormir. Não posso dormir.
– Link – chamo, tentando afastar o sono – Foi você quem trouxe os cavalos noite passada?
Passar a madrugada sem dormir tem suas vantagens, afinal de contas, e não me escapou sua saída repentina da floresta seguida de sons de relincho e cascos esmagando folhas velhas horas depois. Ele me avisara na véspera que daria um jeito mais tarde, embora eu não contasse com aquilo em momento nenhum, mesmo depois que Navi tentara me tranquilizar naquela noite. Mas o tempo se encarregou dos fatos, no fim das contas e talvez, apenas talvez, eu tenha subestimado a capacidade do rapaz em manter promessas – principalmente aquelas em que sua égua Epona está envolvida.
Recebo apenas silêncio como resposta, embora já esteja me acostumando, a essa altura. As palavras de Navi ainda estão bem frescas em minha cabeça. Se começar uma briga, já não será culpa minha. Talvez seja mesquinhez de minha parte mas, honestamente, ninguém precisa saber.
– Cê ainda me deve uma – murmuro arrastada quando a estática realmente começa a me incomodar.
– O que você acha? – retruca.
Solto um riso de desdém.
– Acho que mereço saber o que acontece por aqui sem precisar ficar na surdina o tempo todo – respondo – É isso o que eu ach...
– Shhh... vocês dois! – interrompe Navi, saindo de dentro do gorro onde estivera desde nosso encontro com Sheik – Olhem!
Voltamo-nos para as quatro luzes do centro, tremeluzentes como que prestes a se apagar a qualquer momento. Dentro de quatro tochas posicionadas nos vértices de um quadrado imaginário, as chamas coloridas giram, formando imagens sólidas – a primeira, uma figura encapuzada alaranjada, seguida de outras três similares, ainda que de cores diferentes: azul, verde e roxo. Um cubículo de quatro colunas semelhante a um elevador desce gradativamente no centro do quadrado. Uma vez transformadas, contudo, estas evaporam em pleno ar diante de nossos olhos, seguindo por várias direções, não sem uma deixar uma risada fina e aguda reverberando pelas paredes do salão.
– O que foi isso? – grunho.
Mas Link já está a um passo à frente, atravessando a câmara e subindo um lance de escadas do outro lado. Sigo-o já um pouco cambaleante, contornando o quadrado de tochas com um frio na espinha. Ao fim do lance, ele tenta abrir uma portinhola no fundo da sala, sem sucesso.
– Me deixa tentar – retiro um grampo enferrujado de meu cabelo preso. Não sei como os grampos de Hyrule funcionam, mas os de casa nunca me decepcionaram. Dou de ombros diante do olhar confuso de Link.
Com os olhos turvos, enrosco a haste metálica na pequena fechadura, tateando através das travas como meu pai me ensinara, mas há algo de diferente nesta. Não consigo atravessá-la e girá-la, como se algo sólido a bloqueasse.
Droga, o que é isso agora?
Torço e enrosco o grampo até que as pontas de meus dedos estejam em carne viva.
– Mas que porcaria! – exclamo, sem entender – O que tem aí dentro?
Link me afasta da fechadura, retirando do bolso uma pequena chave suja de sangue e encaixando-a. A porta se abre com um rangido esganiçado das velhas dobradiças.
– Vamos – comanda quando ainda permaneço parada, talvez contemplando minha própria falha, talvez por pura alienação.
O riso dissonante daquelas criaturas ainda reverbera em minha cabeça, mas aperto o passo, um de cada vez.
– Que chave é essa...?
O enjoo retorna como uma onda fria junto a visão, já fatigada, agora turva e dissolvida em manchas de cor. Não consigo encarar Link, não consigo ver seu rosto.
Não vou dormir, não vou dormir, não vou dormir, não vou dormir.
– Isso não impor... – ele se interrompe repentinamente – Cecília?!
Tropeço pelos lados da escura câmara em que adentramos, encostando-me na parede. Meus olhos queimam, meus membros queimam, tudo queima.
Dói.
Isso vai acontecer e não posso fazer nada para impedir.
Que tolice a minha.
Não aguento mais, não aguento mais, não aguento mais.
Quero sair daqui.
– Cecília, que diabos é isso?!
– Não dá... mais... pra...
Vários Links, várias Navis, um carrossel de borrões e formas indistintas. Fecho os olhos que rangem como dobradiças. Minhas pupilas são as fechaduras de uma porta escancarada.
Muitas risadinhas.
O chão é frio.
Vou chorar, vou dormir...
Não não não não....
(Não) quero ir embora.
Deixe-me ir.
***
Deixe-me entrar.
Não.
Quero meu corpo de volta.
Não.
Este corpo não é seu.
Não.
Este corpo não é daquela vadia imprestável.
Não.
É meu.
Não.
Vá embora.
Não.
Não fuja do augúrio revelado.
Não fuja do caminho traçado.
A trama jamais será contrariada.
***
Ainda estou aqui,
Velando pela coerência de uma história que não é minha,
Consertando os estilhaços de um espelho quebrado para sempre.
Passado e futuro comungam diante de meus olhos
Mas nunca tive olhos
E agora possuo um corpo.
Nosso corpo.
Cecília dorme o sono das tormentas,
Castigada pelas ondas de um mar revolto,
A consciência perdida e encontrada,
A consciência encontrada e perdida
Voltará quando tiver de voltar.
Fagocitose
Autocatálise
Autofagia
Consumação,
Nossa mente tripartida é consumida por borboletas
Mas agora eu velarei pelas almas de nós três.
Velaria a floresta por uma gravura imaculada?
Minhas palavras são a lei
São a lei para este mundo
São a lei para Cecília
São a lei para você que agora lê
Sim, você.
Não há passado, tampouco futuro
Há apenas o presente consumado diante de mim
Um caleidoscópio de possibilidades aterradoras
Não há paredes que eu não possa atravessar
Mas decerto há paredes que eu não deva atravessar
Pois a trama jamais será contrariada.
Talvez você não me reconheça
Talvez você tenha prestado atenção
Sou Jane, muito prazer
Chamo-me de Louca
Chamam-me de Louca
Há alguma diferença?
"Cecília! Cecília!"
Os gritos são do jovem que sacode nosso corpo como uma boneca
Mas Cecília já não está mais em casa
E não há ninguém para abrir a porta.
"Link, ela tá dormindo?",
Indaga a compadecida e etérea fada.
"Ela... ela...",
Mas este já não pode encontrar palavras
Quando abro-lhes os olhos e encaro-lhes pela primeira vez.
"Meu nome é Jane", anuncio-lhes,
"Cecília dorme e a velha casa está vazia
Suja de estilhaços e asas partidas ao meio
Vou-me embora quando o chão estiver limpo
Vou-me embora quando a persona núcleo lembrar de si mesma".
Eles não entendem, jamais entenderão
Todavia sabem que não vivo sozinha em casa.
Helena desmaiou em um quarto trancado
Pude ver as marcas de suas unhas na porta;
Cecília flutua na piscina rasa onde seus sonhos moram
Ela não pode voltar.
Sem mais nada dizer, o menino ergue sua espada;
A ponta da lâmina tocando
O pescoço descoberto de Cecília
O pescoço descoberto de Helena
O pescoço descoberto de Jane;
Nossos olhos, por mim habitados, penetram os dele
Sem o receio de Cecília
Sem a fome de Helena.
"Mate-me", digo-lhe "E matará todas nós".
Com as mãos retesadas ao redor do punho
A lâmina é sutilmente abaixada.
O metal treme imperceptível
Suas órbitas turvas se desencontram das nossas
Os olhos do rapaz fogem para as paredes.
"Então foi você quem escreveu aquilo naquele dia?"
Não é uma pergunta.
Ainda perscruto seu rosto de criança
Ainda perscruto seus ombros desarmados.
"Não há porque se amedrontar
Posso lhes fazer mal, mas não devo
Posso lhes auxiliar, e devo
No que me for permitido
Seguir-vos-ei até a gravura escondida
Através de quatro espíritos aprisionados
Se devem acompanhar-me ou não, isto não compete a mim".
***
Depois de passar um bom tempo com um dos pés fincados no asfalto esperando o trânsito desafogar, finalmente pedalo de volta para casa. Recebi alguns elogios do instrutor por me dedicar tanto às aulas, mas tenho saído do ginásio tarde demais por conta disso. Geralmente divido as broncas com Edgar, quando ele decide se esconder nas arquibancadas e pegar carona comigo. Desta vez, sou a única encrencada.
Já faz um mês que o elevador social não funciona e tenho de pegar aquele elevador de serviço que sempre tem um cheiro diferente toda vez que entro. Torço o nariz quando aperto o botão de meu andar e a porta se fecha. Hoje é fedor de carne decomposta; nosso vizinho excêntrico do andar de cima realmente precisa dar uma maneirada nos pratos exóticos de fim de semana. Meu estômago se revira diante de algumas gotas de sangue que escaparam do saco de lixo para o piso naval do elevador.
Abro a porta com cautela, já esperando que minha mãe me recepcione com as mãos na cintura, mas há apenas silêncio. Caminho pela sala vazia, as luzes completamente apagadas. Uma fina camada de poeira reveste cada um dos móveis, mesmo o quadro no centro da sala, aquele que meu pai comprara de um artista de rua e que minha mãe religiosamente limpava aos fins de semana. Chamo por mamãe e Edgar, abro as portas dos quartos, dos banheiros, sem resposta.
Repentinamente ouço ruídos vindo de meu quarto e aproximo os ouvidos da porta antes de abri-la, mordendo os lábios. Não estou sozinha aqui. Há algo ou alguém do outro lado da porta lançando pancadas ritmadas pela parede. Com as mãos suando frio, forço a maçaneta algumas vezes, sem sucesso. Retiro um grampo dos cabelos para colocá-lo na fechadura, apenas para que uma vasta sequência de eventos se engatilhe em minha mente.
Qual foi a última vez que fiz isso?
Por que estou aqui?
O que estou fazendo aqui?
Lembro-me com um estalo.
Esta é minha casa, nossa casa.
Quase sou capaz de vomitar o coração pela boca quando finalmente abro a porta. Sou recebida pelas mesmas paredes azul bebê que habitei durante minha vida inteira. O livro em que tentei me concentrar ainda jaz esquecido sob a cômoda. Acima da escrivaninha, as prateleiras repletas de cadernos de desenho e alguns poucos livros e DVDs, perto do armário de roupas e materiais esportivos.
Há um vulto jogado junto à parede oposta à porta, contudo. A criatura nua bate a cabeça contra o concreto como uma louca, arrepiando os curtos cabelos castanho escuros que lhe cobrem o rosto, fortes cordas e algemas atando seus braços e pernas sujos e esfolados.
Fecho a porta coberta de arranhões e marcas quando ela finalmente levanta o semblante para me encarar, seus lábios descascados e sujos abrindo-se em um sorriso bizarro.
– Cecília, a frágil e cega Cecília – sibila a voz esganiçada em uma risada bêbada – Senti saudades.