"O garoto eternamente atormentado
Por trás do ódio jaz
Um desejo homicida
Por amor"
The Smiths – The boy with the thorn in his side
Assassino
Parricida
Traidor
Que teu sangue se misture àquele derramado por tuas mãos
Morra
Morra!
As vozes nos perseguem. Não importa para onde eu vá, o coro interrupto de maldições não me abandona, e com ele, os efeitos colaterais de meu poder. Com as mãos pressionadas contra a boca e uma enxaqueca lancinante, amparo-me a uma encosta e luto o quanto posso para manter a cabeça no lugar. Mesmo com os olhos úmidos e a visão turva, vejo quando Link aperta os ouvidos e se agacha ao fim da encosta, sucumbindo lentamente ao caos daquelas vozes enquanto sussurra negações e chama por Saria de novo e de novo.
Não resta outra escolha a Navi senão observar apreensiva toda a situação, sem poder fazer nada.
Preciso ser forte.
Parricida
Homicida
Desonrado
Impostor
Mentiroso
Que teu sangue seja o alimento da terra por ti abandonada!
Morra!
Preciso manter o controle.
Preciso manter a calma.
Preciso...
Coloco tudo para fora, as mãos firmemente fincadas na parede de terra batida, mas tudo o que sinto é pânico e pavor. O coro de crianças martela dolorosamente em minha cabeça e, em um momento de desespero, tateio minhas vestes à procura do frasco de Poção Vermelha que tomei noite passada. Não posso, sob hipótese alguma, tomá-la em um espaço de tempo tão curto – segundo Impa, as consequências seriam imprevisíveis. Estou brincando com a sorte, mas não tenho outra escolha.
Não... eu tenho, sim.
Claro que tenho.
Uma respiração irregular escapa por meus lábios entreabertos pingando saliva e bile, a cabeça ainda baixa, enquanto observo o medalhão prateado pendendo em meu pescoço como uma possibilidade irresistível, tentadora e, ainda assim, medonha. Nunca desejei abri-lo com tanta intensidade quanto agora, por mais arriscado que seja – neste momento, sou insanamente capaz de qualquer coisa que retire de mim esta agonia, esta dor insuportável que nunca parece ir embora de vez.
Seguro o colar entre minhas mãos sujas de terra junto ao frasco da poção, os gritos e murmúrios de meus acompanhantes desaparecendo em um eco abafado. Seguro com tanta força que a borboleta de strass deixa uma marca na palma da minha mão. Por tudo o que é mais sagrado, só quero que essa droga de dor vá embora.
Por favor... por favor...
Por favor...
Por favor... resista...
Resista. Resista. Resista.
Uma de minhas mãos trêmulas ainda segura firmemente a pequena garrafa de vidro quando a outra larga o pingente, novamente amparando-me contra a terra suja, um último ato de sanidade em meio ao desespero que me consome. Mas não sei se posso fazer mais que isso.
Resista. Resista. Resista.
A ânsia é tão devastadora que retiro a tampa com os dentes e não hesito em esvaziar seu conteúdo em um único gole.
Não há alívio – apenas uma queimação na boca do estômago.
Cecília, não feche os olhos.
Resista às vozes.
Inspiro e expiro devagar, esperando enquanto tudo volta ao foco. As vozes agora não passam de um pequeno sussurro, e de repente posso entrar em contato com elas, posso descobrir de onde vêm, se quiser. Sei o que elas são. Eu poderia me perder dentro de mim mesma investigando-as, mas são os murmúrios desolados de Link e os guinchos confusos de Navi que, alcançando meus ouvidos, rapidamente me lembram de minhas prioridades.
– Shh...– ouço-me sussurrar o que parece fazer sentido em minha cabeça – Shh... vão dormir...vão dormir...
Lembro-me de todas as vezes em que coloquei Edgar na cama quando era pequeno e, por um momento, sinto-me ridícula repetindo aquilo. Ainda assim, seja o que for, está funcionando: Link retira as mãos dos ouvidos e se levanta devagar.
São todas crianças, afinal.
Quando o último resquício de murmúrio se esvai da minha cabeça, todo o controle exercido por mim desaparece, e não sei o que pode me acontecer se eu tentar trazê-las de volta usando o poder. Nem sequer sei o que pode me acontecer agora que tomei mais do que deveria de Poção Vermelha em plena luz do dia.
– Cecília! Tá ouvindo?! – berra Navi, flutuando agitada à minha frente – Nenhum dos dois vai dizer o que diabos acabou de acontecer por aqui?
Imagens de tudo o que absorvi do coro infantil reluzem como flashes em minha cabeça quando fito Link, ainda se recuperando de tudo aquilo.
Limpo os restos de vômito e sangue do Deku Baba no canto dos lábios com as costas da mão.
– Fala, Link – digo entredentes – Todas aquelas palavras eram pra você.
Observo-o sentar em uma das pedras próximas de nós e levar uma das mãos atrás do pescoço em um gesto intuitivo, desnorteado. Temo olhar em seus olhos e encontrar um resquício da loucura na qual quase afundou há poucos minutos, mas não preciso fazê-lo.
É a mim que ele encara quando finalmente decide falar, e um lampejo de reconhecimento me faz acreditar que sabe que fui eu quem silenciou o coro. A sensação, entretanto, desaparece tão rápido quanto surgiu.
– É justo – O jovem solta um suspiro de frustração e eu reprimo um sorriso nervoso fora de contexto. Testemunhar Link admitindo um erro seria muito mais prazeroso se não estivéssemos em uma situação tão terrível – Tem muita coisa que você não sabe.
"Quando eu ainda era pequeno, costumava existir uma entidade, um ser aqui na floresta, um carvalho maior que qualquer outra coisa que eu já tinha visto até então, que as crianças kokiri – e eu também, por consequência – acreditávamos ser um tipo de pai para nós, e o chamávamos de Grande Árvore Deku. Tudo começou, aliás, por conta dele, que mandou Navi para ser minha fada guardiã, ou algo assim, e eu estava feliz demais para me importar com o porquê. De qualquer maneira, Navi entrou em minha casa enquanto eu dormia e disse que tínhamos de ir até a Grande Árvore o mais rápido possível. Tive de obedecer.
"Quando cheguei até seu leito, a Árvore nos contou a respeito de uma aranha chamada Gohma que parasitava suas entranhas e, pouco a pouco, absorvia sua energia vital. Mas aquela não era, nem de longe, a parte mais bizarra – a Grande Árvore pediu, por fim, que eu e Navi entrássemos lá e a destruíssemos, algo que, na melhor das hipóteses, eu só poderia considerar como sacrilégio! A nenhuma criança kokiri fora permitido adentrar o corpo sagrado de nosso pai. Mas não havia outra escolha, e a Grande Árvore assegurara que confiava completamente em mim e na fada que ele enviara para me orientar. Depois disso...bem... depois..."
Link para por alguns segundos, palavras esquecidas em seus lábios entreabertos, o peito subindo e descendo rapidamente. Ele desvia o olhar de mim, subitamente atônito, como que tentando esconder algo, mas insisto até o final quando um resquício do desvairo recente ameaça-o novamente.
Isso é tudo o que ainda posso ver antes que ele leve as mãos aos olhos, afundando-se em si mesmo.
– Link... – A fada sussurra devagar, como se as próprias palavras pudessem quebrar – Não precisa dizer tudo se não quiser.
O rapaz sai de seu marasmo tão rápido quanto entrou.
– Não – retruca, abrupto.
– Mas eu posso terminar de contar a história pra ela, se for melhor... – ela responde, flutuando agitada por todos os cantos – Só quero entender o que isso tem a ver com o que aconteceu aqui agora, só isso!
– Pelo amor de Din, Navi, cale a boca! – grunhe, a postura ameaçando encolher-se em si mesma novamente – Você torna isso tudo mais difícil do que devia agindo assim.
– Mas...
O peso do olhar que Link lança a Navi – aquele que contém infindáveis possibilidades de ameaça em um único e fugaz instante – faz com que, ao menos desta vez, eu agradeça aos céus por não tê-lo irritado.
Muito daquela raiva se dissolve em algo como um profundo pesar, mas não ignoro de forma alguma o lampejo de crueldade irônica que se demora em sua expressão e, por um bom tempo, seus olhos azuis parecem muito mais frios e inóspitos do que de costume.
Engulo em seco, embora encontre coragem para dizer:
– Termina logo com isso – A voz sai mais áspera do que eu pretendia, mas não ligo.
Seus punhos se retesam quando falo.
– Derrotei a Gohma, é claro – Um sorriso maníaco brinca em seus lábios, embora não haja humor algum nos olhos – Mas ela não foi a única coisa que eu matei.
Dou um passo para trás, assustada.
– E então...? – inquiro, circunspecta.
Ele ri sofregamente.
– Não é possível que você seja assim tão estúpida – responde, as frases cada vez mais arrastadas – A Árvore só continuou viva enquanto a Gohma, que já havia sugado toda a seiva, a essa altura, também estivesse. Diabos, Cecília, eu matei a droga da Grande Árvore Deku!
Esforço-me para manter uma expressão neutra e continuar a inquiri-lo, mas é mais difícil que parece.
– Link... não fale assim...! – geme Navi.
– Então as vozes seriam..?. – interrompo-a.
– O que você acha? – Link resmunga, embora não espere resposta – Os kokiri logo souberam que eu matei nosso pai e não hesitaram em me banir da floresta, os mesmos cadáveres estirados lá embaixo, largados aos vermes!
Um longo silêncio se intercala enquanto ele observa a vala de corpos pela qual passamos e, a despeito do rancor e do sarcasmo, suas mãos trêmulas fincadas à pedra denunciam a dor e o horror que sente ao encarar a paisagem desolada.
Ele observa as crianças com quem cresceu.
As mesmas crianças que o baniram dali.
As mesmas crianças que, na ausência de seus corpos decompostos, agora voltam para assombrá-lo.
– Sabe qual é a parte mais engraçada? – diz repentinamente, agressivo – A última coisa que a Grande Árvore disse para mim foi que meu destino sempre foi sair da floresta. Sempre, desde o início!
Navi continua flutuando atônita, sem saber o que dizer ou fazer, enquanto Link se entrega a gargalhadas pesadas, vazias, uma grande piada que pertence apenas a ele e a mais ninguém. Pergunto-me se solta as risadas para impedir a si mesmo de chorar e aquilo me irrita de uma maneira tão estúpida que não consigo controlar o que digo em seguida, o sangue fervendo nas têmporas:
– Quer dizer que você sempre foi um assassino imprestável, né? – Uma parte de mim sabe que não deveria dizer nada disso, mas ela não está aqui agora – Não me admira que te baniram daqui.
Toda a sua máscara de ironia e desdém se dissolve.
– Que direito você tem de dizer isso?! – ele me encara sem pudor algum, como quando o vi pela primeira vez.
– O direito de quem quase acabou como a droga dessa árvore – devolvo o olhar – Cê não tem nenhum respeito pela vida, né? – digo sem pensar.
– Como ousa dizer isso na minha frente? Eu o amava como um pai! – exclama, e com a raiva, vejo também a dor e o pesar, mas não importa. Nada disso importa – Ele nos protegia, cuidava de nós de uma maneira que uma aberração como você jamais entenderia!
Lembro-me de meu pai, de seus olhos gentis, de suas mãos firmes e seguras cortando meus cabelos.
– Cê não sabe nada sobre mim! Nada! – cuspo – É isso que me impede de ter pena de você!
– PAREM!
Fecho os olhos, esperando mais um grito.
– Cecília...
– Navi, já te disse para não falar com ela – ele grunhe.
– Eu falo com quem quiser. E ela é uma pessoa, Link, não uma aberração – A fada retruca, virando-se para mim em seguida – E Cecília... pode ao menos tentar respeitar o lugar...?
– E por que eu deveria? – limito-me a resmungar. Estou cansada de responder, cansada de tudo.
– Porque eu estive lá também e aquele dia não foi fácil pra gente – ela responde, a voz não passando de um sussurro – Apenas respeite... por favor...
Toda a raiva e a vontade de responder com palavras duras morrem em meu peito, restando apenas culpa e remorso.
– Se respeitem, tá? Pelo menos enquanto eu estiver aqui – diz finalmente, abatida.
Pelo canto do olho, vejo que as palavras de Navi têm um efeito similar em Link que, desarmado, levanta-se da pedra e prossegue em direção ao Vale, o semblante desolado como raramente o vi mostrar. Nós o seguimos.
– Ele não merecia terminar daquele jeito – murmura para ninguém em particular.
– Nenhum de nós merecia, Link. Nenhum de nós – Navi murmura de volta.