A Garota que Nunca Existiu

By WitchGianni

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Em um esquecido subúrbio na zona norte do Rio de Janeiro, Alice, uma fã fervorosa da franquia The Legend of Z... More

Capítulo 1 - The Girl with the Machine Gun
Capítulo 2 - Bronzes e Cristais
Capítulo 3 - Respostas
Capítulo 4 - The Wall
Capítulo 5 - Siga o Coelho Branco
Capítulo 6 - Through the Looking Glass
Capítulo 7 - MK Ultra
Capítulo 8 - Controle
Capítulo 9 - She's lost control again
Capítulo 10 - Presa
Capítulo 11 - Predadora
Capítulo 13 - As pessoas mentem o tempo inteiro
Capítulo 14 - Espelhos distantes
Capítulo 15 - Juramento
Capítulo 16 - Conatus
Capítulo 17 - Remoto Controle
Capítulo 18 - Destinos
Capítulo 19 - Dores do crescimento
Capítulo 20 - Na Estrada
Capítulo 21 - Ultimato
Capítulo 22 - Pela luz dos olhos teus
Capítulo 23 - The boy with the thorn in his side (Parte 1)
Capítulo 24 - The boy with the thorn in his side (Parte 2)
Capítulo 25 - Eco
Capítulo 26 - Letargia
Capítulo 27 - Maya
Capítulo 28 - Véu
Capítulo 29 - Kensho
Capítulo 30 - Existenz
Capítulo 31 - Refúgio
Capítulo 32 - Sublimação
Capítulo 33 - Réplica
Capítulo 34 - Inexorável
Capítulo 35 - Retorno
Capítulo 36 - Cruz de estrada
Capítulo 37 - Prioridades
Capítulo 38 - Autofagia
Comunicado - 29/05/2022
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41

Capítulo 12 - Interrogações

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By WitchGianni

Em algum momento embrenhado na urdidura incessante das horas, não havia nada para sentir, nada para tocar ou ouvir. De repente, há tudo.

Começa devagar, com uma sensação de dormência nos pés e nas mãos – eu ainda os possuo? – que culmina em uma forte cãibra. A isto, segue-se a consciência de cada um dos cortes, lacerações e machucados espalhados pela minha pele. A audição vem logo depois, com um perturbador zumbido em meus ouvidos, o som do silêncio que sempre detestei. Vou me apercebendo do gosto metálico e amargo de meus lábios momentos depois; junto a este, vem a sensação de que meus dentes parecem grandes demais em minha boca, e que eu poderia cuspi-los a qualquer momento.  Conforme a vigília se dissolve, a sensação desaparece devagar, embora nunca me abandone totalmente, acompanhada por uma crescente pressão na garganta. O despertar total vem, por fim, e meus olhos, antes fechados como que costurados, abrem-se.

Junto ao despertar, há dor.

Não mais suportando manter meus lábios cerrados, sinto um grito de agonia cortar ainda mais minha garganta.

As lágrimas descem, viscosas e grudentas, por meu rosto sujo e suado. Cheiro de sangue ressecado – meu sangue – , imundície e suor seco impregna meu nariz. Vozes aturdidas, milhares de almas sem corpos presas em cacos de vidro, gritam em minha mente. Outras sussurram, embora todas, sem exceção, façam a mesma pergunta.

Quem é você?

Quem você é?

E eu respondo.

Sou.

Sou e nada mais.

Sou uma colcha de retalhos cortada em mil pedaços e costurada novamente.

Sou Cecília da Costa e mais ninguém.

Quero gritar e chorar, quero rir histericamente e berrar aos céus de agonia e êxtase incontido, pois este corpo é meu e de mais ninguém – mesmo que esta seja apenas uma mentira que eu conte a mim mesma. Toda a dor, todo o trauma que sinto correr voraz, consumindo as entranhas como um parasita, é o atestado vivo de que estou no controle. Junto a tudo isso, no entanto, o medo paira sobre mim novamente, onipresente. Cresce em mim a ameaça velada de Helena e as perguntas deixadas com ela: para onde foi? Para onde irá? De onde veio? Pergunto-me, não pela primeira vez, se ela me matará por dentro.

O medo cresce, irradia-se em ondas longas, alcançando os tornozelos esfolados, as mãos dormentes, a cintura machucada, materializando-se na constatação de que estou imobilizada e amarrada a uma pilastra de madeira, não mais um mero sentimento de alerta, mas uma dor palpável que culmina em uma nova pergunta, esta ainda mais urgente.

Onde estou?

Trêmula, e tão rápido quanto posso, obrigo-me a me recuperar do estado de choque. Meus gritos interiores devem se calar, por ora. Engulo em seco e ajusto a vista à escuridão, algum tipo de aposento subterrâneo. É meu destino estar nestes lugares, penso secamente. Minha respiração se mistura ao ar quente e opressivo, seco e repleto de poeira, favorecendo pensamentos mórbidos. Os minutos correm e, com eles, as dúvidas crescem mais rápido que posso pensá-las em palavras.

Como cheguei até aqui?

Imagens da noite anterior passam por mim, vislumbres falhos e roubados de minha consciência sonolenta, imagens nítidas de Helena. Quando percebo que minhas memórias de nada servirão, recorro às de minha contraparte que se desenrolam diante de mim, nenhuma praticamente agradável. Escondo-me diante de suas lembranças mais nefastas, enojada, observando todos os acontecimentos da véspera diante de seus olhos: a chegada a Kakariko Village, o esconderijo no cemitério, a luta com Link, seu desmaio fulminante responsável por minha recuperação. Não me contenho diante desta memória, deliciando-me com a sucessão de sentimentos contraditórios em sua mente com um prazer cruel. Aquela parece ser a primeira vez que Helena experimentava o medo, a perda completa de controle para algo desconhecido e fora de seu alcance. Ainda não entendo muito bem todas as circunstâncias que tornaram isto possível, mas sinto-me um pouco vingada em meio ao temor.

A raiva e o desespero crescem quando percebo que minha provação ainda não acabou.

Agora que tenho meu corpo de volta, devo pagar pelos erros de Helena.

Link está vivo, afinal.

Ouço vozes indistintas acima de mim e meu coração acelera. O que pode acontecer comigo agora? Por que Link não me matou quando teve chance? O que ele pretende fazer comigo, agora que fui capturada? Acima de tudo: qual é meu próximo passo?

Pelo que sei, posso sofrer muito mais em suas mãos do que julgaria possível. Helena (eu?) tentou – e falhou – em matá-lo, no fim das contas. Ele tem todas as razões para me detestar.

Respiro fundo. Pense, Cecília, pense. Tento vasculhar antigas recordações tolas, conversas entre mim e Alice no meio da aula, em que ela falava de Zelda tantas vezes até eu não aguentar mais. Reprimo a pontada de dor que estas memórias desencadeiam em mim e obrigo-me a focar no que preciso saber. Junto a tudo isto os relatos das Twinrova sobre Link ser o tal Herói do Tempo escolhido pelas deusas, sobre como seu idealismo, ou qualquer outro bom sentimento que seja, o levou a desembainhar a Master Sword do pedestal e tornar-se quem é.

Link é o mocinho do jogo, certo?

Certo?

Por Deus, ou quem diabos seja, se houver alguma justiça neste mundo, por tudo o que sofri e passei, ele terá piedade de mim assim que tudo se esclarecer.

Não, diz outra voz em minha mente, não gaste suas esperanças com tanto abandono. Esta é uma terra estrangeira e inóspita.

Não confie em ninguém.

O som das vozes cresce, aproximando-se cada vez mais de mim.

– ... não ouviu?

– ... ela acabou de gritar...

Ouço o som de passos se aproximando e estremeço. Tento encontrar resistência no pensamento de que já passei por coisas demais para continuar sentindo medo. O pior que podem fazer é me matar de uma vez.

E mesmo isso seria uma bênção.

Uma porta é aberta a alguns metros acima de mim, por onde adentra um vulto esguio, segurando um candeeiro, descendo os degraus que separam o lugar em que estou, que parece ser o sótão, do resto da casa. Abaixo a cabeça por impulso, espiando pelo canto do olho. Botas de couro se aproximam de onde estou a passos seguros, comedidos, parando em frente a mim.

– Eu tenho uma única pergunta e vou fazê-la apenas uma vez – a voz que ouço é séria, sonora e masculina, embora esconda um traço sutilmente juvenil – Quem é você e quem te mandou até aqui?

Respiro fundo e fecho os olhos.

– Você... fez... duas perguntas – minha voz sai trêmula, rouca e cansada, muito menos segura do que eu pretendia.

Uma mão forte puxa meu queixo para a frente, como que para ver-me melhor.

– Não está em condições de ser irônica agora, seja lá quem for – retruca, mantendo a voz perigosamente calma – Olhe para mim.

Ele solta meu rosto e, sabendo que não posso manter este simulacro para sempre, abro meus olhos devagar.

Nenhuma das imagens toscas coladas no antigo caderno da escola de Alice – ou qualquer pôster em seu quarto – lhe faria justiça. Ele é alto e forte, e alguma coisa visceral em seu semblante pálido, precocemente amadurecido pelos anos que lhe faltaram, leva qualquer um a acreditar que é muito mais velho do que aparenta (mesmo que seja verdade, até certa extensão). Seus cabelos loiros despenteados estão presos em um apertado rabo de cavalo, não mais escondidos pelo gorro que aparecia em minha visão; duas argolas prateadas pendem de suas orelhas levemente pontudas; ele veste uma túnica verde-escura desbotada e cotas de malha de aparência muito mais resistente que as minhas, junto a ombreiras de ferro, provavelmente advindas de alguma antiga armadura; uma cota mais fina recobre os braços, terminando em grossas luvas de couro vazadas, muito mais longas que as minhas. Permito-me encará-lo nos olhos com mais acurácia.

É quando percebo que posso mesmo morrer ali.

Seus olhos são de um azul vazio, cru e glacial, despidos do idealismo que porventura veio a existir ali um dia. Por isso, não encontro forças para sustentar o olhar por muito tempo, suas órbitas me perfurarão de dentro para fora se eu insistir. Meu peito martela p com pânico por dentro desespero renovados.

Se os olhos são de fato a janela da alma, como sempre me acostumei a ouvir, aqueles não têm alma alguma.

Não, não haverá piedade nenhuma para mim hoje.

Encolho o quanto ainda posso, com os pés e mãos atados, assustada. Ao constatar o efeito intimidante que sua imagem causa em mim, ele se aproxima ainda mais.

– Que engraçado – diz, sem humor nenhum – Não estava desse jeito quando me atacou no cemitério.

Ele puxa uma pequena faca das mangas e finca-a na pilastra acima de mim com um baque surdo,  e estremeço ainda mais, a respiração ofegante. Diacho, o que devo fazer agora?

– Você não me parece ser idiota, então deve saber que está em clara desvantagem aqui – prossegue, o tom de voz controlado denotando que é capaz de fazer algo ainda pior – Pelo seu próprio bem, é melhor você responder às minhas perguntas. E rápido.

Mordo os lábios até sentir gosto de sangue.

– Você sabe quem eu sou – diz, e esta não é uma pergunta. Assinto com a cabeça, resignada. Não posso adiar os fatos por muito tempo.

– Você é Link, o Herói do Tempo – ouço a mim mesma dizer em um jato só.

É sua vez de assentir.

– Veja bem, não estou perguntando o porquê de ter tentado me matar – Link profere as duas últimas palavras com uma acidez quase irônica – As deusas sabem o quanto as pessoas dessa cidade têm razões o bastante para fazê-lo ao menos uma vez. Mas não é esta a questão – ele me encara novamente, fincando outra faca na pilastra – Só quero saber quem te mandou pra cá.

Engulo em seco.

– Se eu disser, vou morrer – sussurro.

Espero que Link tente qualquer meio a seu dispôr para conseguir o que quer, mas sua resposta é seca e cheia de descaso.

– Faça como quiser. Sabe que não pode voltar para seja lá quem tenha mandado você até aqui. Mas ainda me orgulho de ser do tipo que não mata pessoas, mesmo aquelas que querem me matar – ele dá de ombros – Se cooperar, talvez, apenas talvez, eu te deixe ir sem grandes atropelos. A escolha é sua.

Franzo a testa ante a oferta, lembrando-me novamente de que não devo confiar em ninguém, nem mesmo nos heróis que salvam a princesa no fim da história. Um fio de dúvida é traçado em meus pensamentos, no entanto: não vale a pena tentar ao menos uma vez?

– Não sei se você vai acreditar em mim – digo, por fim.

Um sorriso sarcástico brinca em seus lábios pela primeira vez.

– Não preciso acreditar em você, garota – Link responde – Só preciso saber se quer continuar viva. Isso por si só já me garante que está falando a verdade.

Engulo em seco.

– É uma longa história.

Ele ri novamente.

– Confie em mim, tempo é a última coisa com que você precisa se preocupar agora.

Limpo a garganta, escolhendo as palavras com cuidado. Nada do que vivi nas últimas semanas pode ser resumido em um punhado de frases soltas jogadas casualmente. Então, pergunto a mim mesma, como devo começar?

Comece pelo início, murmura uma voz, um belo lugar para começar.

– Eu não sou daqui – digo simplesmente. O que tenho a perder? – Não faço a mínima ideia de como vim parar neste lugar. A única coisa que lembro é que fui capturada por umas mulheres chamadas Gerudo, torturada por duas bruxas psicóticas por semanas e depois... Depois... Elas me fizeram tentar te matar – calo-me, impedida de terminar. Ouso, contudo, levantar o rosto e observa-lo – O que acha de tudo isso agora?

Link encosta em um dos lados da pilastra e cruza os braços, sua expressão ilegível.

– A única coisa que posso concluir é que você é uma pessoa de muita imaginação.

Cerro os punhos.

– Tá dizendo que não acredita em mim? – retruco, irritada.

Ele dá de ombros novamente.

– Na verdade, penso que não tem tanta vontade de permanecer viva como presumi.

– É uma pena que pense assim – resmungo, controlando-me para dizer algo do qual me arrependa depois – Porque tô dizendo a verdade.

– E espera mesmo que eu acredite em toda essa história de lavagem cerebral para vir aqui me executar? – retruca, permanecendo irritantemente calmo – Não é mais fácil admitir que você simplesmente queria o preço da minha cabeça, como todos os outros?

– Escuta aqui – sinto a raiva se sobrepujar ao medo com uma rapidez vertiginosa – Eu não sofri tudo isso até agora, muito menos arrisquei ainda mais minha vida contando, pra você simplesmente me dizer que não acredita sem nem sequer pensar.

Link se aproxima novamente de mim, encarando-me até que eu não aguente mais e finalmente diga o que quer ouvir. É quando noto, não sem um estremecimento de susto, a horrível cicatriz deixada pela flecha de Helena em sua bochecha, e constato o pior: a de que ele não está disposto a me deixar ir com tanta facilidade, não importa o quão plausíveis minhas palavras venham a se tornar.

O que é um réu diante de um júri tendencioso?

O ranger da porta interrompe meu fio de pensamentos, deixando-me sobressaltada. Até mesmo Link parece surpreso, seu rosto assumindo uma carranca enviesada.

– Falei que ia resolver isso sozinho, senhora Impa – resmunga.

Uma mulher curvilínea e robusta desce as escadas, aproximando-se de nós. A primeira coisa que noto ao vê-la são seus cabelos brancos, penteados para trás, e seus olhos vermelhos profundos.

Algo nela me é estranhamente familiar.

– Claro que falou. Mas lembre-se, Link, – sua voz é profunda e imperiosa – de que a dona desta casa ainda sou eu. E você, minha cara – ela olha para mim – vai contar agora tudo o que lhe aconteceu. 

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