Depois das Chamas - Livro 1

31 - Janela Sobre o Mar

Depois de tudo o que eu tinha visto, Griffin ainda havia me mostrado mais uma de suas lembranças. Cavernas guardadas sob o abismo que davam passagem para os outros reinos, e isso mudava tudo.

A possibilidade que aquilo trazia era imensa, eu conseguiria atravessar e levar Kian comigo, mas e os outros? Como eles fariam para chegar lá? Ainda havia muito o que pensar. Pessoas do passado e do presente se misturavam em minha memória, e por mais que eu tentasse, não conseguia pregar os olhos, apesar do corpo cansado.

Sai da minha barraca para espairecer e ver se o sono vinha aos poucos. Caminhei até a beira do mar e deixei que ele lavasse meus pés enquanto me trazia um arrepio gélido por conta da temperatura da água. Brinquei com a magia, fazendo pequenas figuras se formarem em forma líquida, e aquilo me divertiu.

Moldei o grifo, o lobo, os sereianos e os coloquei em forma circular em minha frente, eram as feras de Misac que eu havia conhecido, e todos eles me pediam para que e trouxesse seu mestre de volta a eles. Mas eu não fazia ideia de onde encontrá-lo.

Desde que soube que Tisan havia sido corrompido pelo mal, eu comecei a duvidar dos outros membros, pois eles também poderiam ter sido tentados a mudar de lado e aceitado de bom grado. Era melhor parar de esperar que os antigos heróis salvassem Keevard, e começar a acreditar que as pessoas que estavam nessas areias seriam os novos guerreiros que honrariam o nome de Darius e de seu filho.

- Também não consegue dormir, Milady?

Desfiz as figuras na água e me virei para constatar um par de olhos azuis que se pareciam tanto com aquele mar que eu desconfiava que aquela realmente era sua origem.

- Parece que meus pensamentos se recusam a desligar, Calel - ele então se aproximou de mim e deixou que a água fria chegasse aos seus pés, notei um pequeno desconforto em sua feição quando teve noção da temperatura.

- Tem certeza que o mar mais gelado do continente irá te ajudar a adormecer, senhorita?

Ri com sua ironia e não pude deixar de notar que a presença dele me deixava confortável.

- O mar me ajuda a ficar mais calma.

- Entendo perfeitamente - ele mantinha as mãos atrás das costas e sustentava uma postura firme, seus modos eram de um verdadeiro cavalheiro, e isso me divertia - sempre fui um homem do mar, e não há nada nessa vida que eu ame mais do que viver no oceano.

Então uma ideia maluca passou pela minha cabeça, e eu não conseguia afastá-la de maneira alguma. Virei-me para Calel e não conseguia parar de sorrir.

- Confesso que adoro vê-la sorrir, senhorita, mas neste momento estou assustado - gargalhei com o comentário, o que só fez as sobrancelhas dele se unirem em confusão.

- Gostaria de conhecer o oceano, Calel?

A surpresa em seu semblante foi suficiente para me divertir ainda mais. Eu sabia que ele não iria recusar.

- Isso é possível? Consegue nos levar ao mar? - o brilho em seu olhar foi tão intenso quanto da lua que nos rodeava.

- Venha - estendi minha mão à ele e percebi que ele a agarrou sem nem mesmo contestar.

A magia da água era a mais fácil de se controlar, e o mar falava comigo como um velho amigo. E então ele se abriu para nós e arrastei Calel comigo para a escuridão.

Assim como consegui manter o ar sob meus pulmões quando me encontrei com as sereias, consegui fazer a mesma coisa dessa vez, e com Calel também. O frio também não nos atingia, de alguma forma eu conseguia controlar a água para que não nos tocasse.

Levei-o para o fundo do oceano, para a parte onde as feras de Misac viviam, criaturas que continham luz própria e iluminavam tudo ao nosso redor. Percebi que Calel estava sem fôlego, não por conta da água, mas simplesmente pela emoção de saber o que vivia abaixo do mar que ele tanto amava.

Passamos muito tempo nos divertindo com aquelas criaturas que dançavam sob nós, e por aquele breve momento esquecemos de todos os problemas que teríamos que enfrentar no dia seguinte. Só voltamos à superfície quando a magia reclamou meu corpo e o cansaço se tornou maior do que toda a diversão.

Quando tocamos novamente as areias de Ghalan, um leve tom alaranjado era perceptível no horizonte, o amanhecer já estava nos alcançando e finalmente o sono havia chegado com força sob meu corpo.

- Já vi muitas coisas incríveis nessa minha vida, Milady - disse Calel enquanto nos despedimos - mas essa com certeza foi a maior delas. Nunca pensei que um dia eu conheceria o mar em todas as suas formas. Serei eternamente grato à você.

Antes de entramos no oceano, Calel tinha um peso sob os ombros e os olhos manchados pelo cansaço. A pessoa que eu via nesse momento era de alguém que havia encontrado momentos de paz para sua alma. E isso me alegrava, pois deixar meus amigos contentes era uma missão de vida para mim.

Mas acredito que Calel tenha confundido alguns sentimentos, pois em um instante senti seus braços ao meu redor e seus lábios abrindo os meus com delicadeza.

Foi um beijo calmo e dotado de gentileza, como eu jamais havia tido, mas sem nenhuma emoção. Alguma coisa dentro de mim gritava com toda força para recuar, como se dissesse que aquilo era errado.

Me afastei dele com calma enquanto seus olhos abriam de leve, me revelando aquele mais profundo azul, que sorria como se uma grande felicidade tivesse o arrebatado.

- Durma bem - ele sussurrou em meus ouvidos e seguiu para sua cabana, me deixando atônita e sozinha na areia.

Bem, pelo menos foi o que eu pensava.

Virei-me para seguir o caminho de meu dormitório improvisado e percebi que alguns metros de mim Kian me encarava com o que parecia pesar em seu semblante.

Não consegui me mover por conta do choque e da surpresa. A única coisa que pude fazer foi observá-lo me dar as costas e começar a se afastar.

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Depois das Chamas

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