8º parte do Capítulo XVII

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- Oh! Valha-me Deus! - exclamou a minha madrinha, atrapalhada de espanto. - Vossa Graça, ela está a sofrer um desgosto de amor e ao transformar-se em corvo congelou os seus sentimentos de fada e agora voltou a senti-los a dobrar ou a triplicar com a regressão ao seu estado natural - levantou-se e veio ter comigo. - O melhor é transforma-la num corvo novamente.

- Não! - atalhei de imediato.

- Mas ela está a sofrer? 

- Também eu sofri durante oitenta anos por amor e não morri. As suas lágrimas não me vão comover. Ela é uma bruxa, madrinha! Uma fada bruxa! E ela nunca foi misericordiosa comigo, porquê é que havia de ser com ela?

- Não devias ser tão cruel. Tu não és assim - repreendeu-me, baixinho.

- Se não fosse a bruxa Morgana eu seria um velho de noventa e oito anos condenado à infelicidade. E eu é que sou cruel!? - murmurei, com alguma irritação. - Levanta-a recorrendo à magia a senta-a numa cadeira.

Enquanto a minha madrinha acatava a minha ordem, fui buscar um copo de água à mesinha do meu quarto onde repousava um jarro de água que estava sempre disponí­vel para que eu me servisse. 

- Bebe - ofereci-lhe o copo de água, pois Arabel já se encontrava sentada com as mãos no peito como estivesse a segurar o coração com medo de que ele fugi do peito para não sentir o desgosto de amor. - Para teu bem, é melhor fazeres um esforço para te acalmares. Precisamos conversar e depois pode ser que eu aceda ao teu pedido de voltares a ser um corvo.

Com a mão trémula aceitou-o e bebeu alguns goles. A minha madrinha ofereceu-lhe um lenço e ela limpou o rosto e as lágrimas que caiam a cada minuto. As asas tinham perdido o brilho inexplicavelmente, o cabelo estava desgrenhado por se rebolar no chão e o vestido estava engelhado. Já não parecia a fada valente e malcriada que eu conheci, mas uma criatura frágil e perdida. Observei-a, em silêncio, e interroguei-me se aquilo não seria uma representação brilhante de uma bruxa com dons de actriz. Era incapaz de confiar naquelas criaturas!

- Vossa Graça - chamou-me Arabel, abafando um soluço. - Rogo-lhe que autorize... - mais um soluço de choro -, que a Violeta transforme apenas o meu coração igual ao do corvo para não sofrer tanto. Por favor... - começou a chorar, novamente.

- Isso é possível, madrinha?

- Sim. Aliviará¡ um pouco o seu desgosto. 

 - Hum... - soltei eu, pensativo. A magia surpreendia-me sempre! Uma fada com um coração de corvo? - Que seja, então! Mas eu quero respostas, Arabel, às minhas perguntas. Não te atrevas a voltar a ser aquela fada malcriada.

Ela assentiu com a cabeça, porque estava desesperada para um remédio para o desgosto de amor. Tinha as maiores esperanças que desta vez a nossa conversa iria correr melhor!

A minha madrinha ergueu a sua varinha, formulou umas palavras mágicas e uma explosão de brilhos tomou conta de Arabel. A luz tornou-se tão intensa que me obrigou a fechar os olhos. E quando voltei abri-los vi Arabel com a pele do peito e do braço esquerdo coberto de penas pretas reluzentes. Até na face esquerda havia duas penas muito pequenas. O seu lado esquerdo, o lado do coração, era a memória de que há pouco tempo ela tinha sido um corvo. Ela estava esquisita, não se parecia a uma fada, mas também não era um corvo! O que seria então? Deu-me gozo vê-la assim. Em tempos, ela também contribuiu para a minha desgraça: perdi a minha identidade, a minha vida,  envelheci e fui tratado como um mendigo. Não pude evitar e soltei uma gargalhada, porque senti que estava a fazer-se justiça.

Sentei-me na poltrona e dei-lhe um sorriso de vitorioso. Era eu que estava a sair vitorioso! A fada com penas ficou cabisbaixa e não sei se foi para esconder a sua tristeza ou o seu olhar de ódio por mim. 

O AMOR NÃO DORMEWo Geschichten leben. Entdecke jetzt