Capítulo 19

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Anahí

Foram dias, semanas e longas tardes de solidão. Eu estava reclusa, isolada no meu mundo superficial e rotineiro. Mesmo que soasse entranho, já fazia muito tempo que eu não trabalhava como costuma ser. Na boate, não fiz nada além de meros shows dançantes para exibir o corpo ao público masculino. Lessa não estava contente com essa mudança, talvez nem eu mesma estivesse.
Era angustiante pensar que eu não queria deitar com mais nem um homem. Era apenas por um tempo, decidi que seria temporário. Eu não estava bem.

Minha apatia não podia durar por mais uma semana, ou eu estaria falida em pouco tempo. Dulce não me fez perguntas como de costume. Ela apenas andava de um lado ao outro da casa, fingindo que não notava as minhas mais recentes atitudes. Quando tínhamos oportunidade, as noites de meninas eram regadas de muito chocolate e filmes besteirol.

Nós também costumávamos conversar sobre a ansiedade dela com o novo emprego e com o fato de se mudar para outro lugar.

Algumas vezes durante essas noites meu telefone tocava incessantemente, notificando as ligações de Ricardo. Mesmo que eu as rejeitasse ele simplesmente não desistia. Então me obriguei a tomar uma decisão final. Colocá-lo na lista negra.

Sentadas no chão da sala, minha amiga eufórica e eu buscávamos mais algumas opções de filmes para assistir aquela noite.

- Devíamos mudar nosso roteiro hoje.

- O que sugere?

- Um documentário!

- O que tem de melhor nisso?

- Deixe de ser chata, Anahí. Precisamos de informação.

- A intenção dessas noitadas é nos divertimos.

- E vamos! Para de reclamar e assiste antes de julgar a minha ideia.

Ela segurava o controle frente a TV, passando por várias opções do gênero. Era chato demais esperar que ela se escolhesse. Dulce era muito indecisa. Demorava horas para escolher o que queria, fosse o que fosse, ela sempre fazia toda aquela delonga antes de tomar decisões.

Eu pelo contrário era mais ágil com tudo, inclusive em um assunto como aquele.

Com um gritinho vitorioso ela saltou e disse ter encontrado o que tanto procurava. Dei as ordens para ela apertar o play de uma vez e assim ela fez.

A primeira imagem que surgiu na tela foi a de uma menina esguia, sentada sobre um solo rachado e de terra vermelha, sendo exibida pela voz de uma jornalista. Ela estava bastante desidratada e com os ossos das costelas visíveis, tanto que era possível contá-las sem perder a fidelidade.
O seu rosto era inexpressivo, sem dor, mesmo que eu tivesse certeza de que ela sofria por estar ali cercada de horror. Não consegui entender como alguém naquele estado ainda conseguiria respirar ou continuar vivo. Ao seu redor estavam mais duas crianças, iguais tanto na aparência quanto nos semblantes vagos.

Meus joelhos se retraíram contra o meu corpo e me deram uma única certeza. Eu nunca esqueceria aquela imagem.

Dulce não notou meu estado de choque porque estava da mesma forma, mas ao oposto de mim, ela lacrimejava, se sentindo tão miserável quanto eu.

A campainha da porta tocou e espantou as duas. Eu não quis interromper o momento dela me prontificando para ir até lá. Suspeitei que pudesse ser o porteiro chegando àquela hora para trazer as contas mensais do condomínio.

Ele sempre escolhia as horas erradas para fazer isso.

Quando puxei a maçaneta minha face se enrubesceu, mas de pleno susto. Matias estava imóvel como uma estátua, usando mais um dos seus muitos casacos pretos, igual um mensageiro da morte. Revirei os olhos e apostei em fechar a porta na sua cara, mas ele pôs o pé impedindo minha ação.

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