Capítulo 01

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Presente...

Faltava apenas a última sequência de inversão Split daquela noite para que Anahí terminasse o seu número de pole dance. Os clientes soavam empolgados e cochichavam ao pé do ouvido do agenciador dela, brigando entre si por apenas algumas horas ao lado da mais cobiçada de todas as dançarinas.
Os olhares invejosos das outras garotas da casa não pareciam incomodá-la em nada, pelo contrário, o ego e autoestima só ganhavam mais intensidade.
"Só se inveja aquilo que é bom" essa era sua frase estimuladora de todos os dias.

Assim que terminou ela mandou a sua tradicional piscadela e se despediu voltando para o camarim. Logo na entrada havia uma funcionária com um casaco longo e fechado nas mãos cobrindo tudo o que não devia estar a amostra fora dos palcos.
Cansada, se sentou de frente a sua penteadeira e retocou a maquiagem, olhando detalhadamente a sombra brilhosa que tinha escolhido, e percebeu que ressaltavam ainda mais seus olhos azuis.

— Vou exigir que me empreste essa sombra na próxima semana! — A voz altiva da ruiva fez Anahí sorrir.

—Tenho como negar?

— Não!

Dulce era a sua única amiga naquele lugar. As duas moravam juntas desde que Anahí se mudou para Milão e fez da prostituição o seu meio de vida. Ela sabia que a mulher tão cheia de luz não devia estar ali, muito menos naquele meio. Ela era boa e nunca saia com os homens por dinheiro. Apenas dançava de peças íntimas para conseguir ao menos o dinheiro dos figurinos e pagar o aluguel do apartamento.

Ao contrário de mim, que sempre quis mais. Nunca me contentei com as migalhas das danças, quando se tornar uma acompanhante de luxo era bem mais rentável.

— Que horas vamos para casa hoje?

— Você pode ir na frente. Ainda tenho que ver qual dos caras vai querer sair comigo essa noite.

O semblante da ruiva pareceu entristecido.

— Porque não faz como eu, Anahí?

— Não me chame assim aqui! — a repreendeu, junto ao pé do ouvido — Madness. Não se esqueça. Não vamos começar esse assunto mais uma vez, certo? — contestou.

— Não. Tudo bem — respondeu derrotada.

As mãos pesadas do homem sobre os seus ombros, fizeram Anahí revirar os olhos, e tornar a realidade.

— Minha querida! Vamos adiantar as coisas? O embargador quer vê-la logo.

— Posso pelo menos terminar de me arrumar, Lessa?

— Não apenas pode, como deve — afirmou enquanto acendia um cigarro virando os olhos logo em seguida para a ruiva — Candy, não quer acompanha-la hoje?

— Quanta gentileza sua, mas sabe muito bem que não faço essa parte do trabalho.

Mexendo a cabeça com uma expressão negativa, ele sorriu debochando das palavras da garota.

— Você devia tentar convencê-la e mostrar para ela como é bom, Madness. Quem sabe assim as duas saem daquele lugarzinho onde moram, indo para uma cobertura digna de mulheres tão bonitas.

— Vamos de uma vez? — Anahí sabia que Dulce ia discutir com ele, e sair dali seria uma boa opção antecipada.

Dando um beijo de despedida na cabeça da amiga, Anahí arrumou a peruca e a penteou cuidadosamente pela última vez.

A invenção dos cabelos falsos tinha sido de Dulce. Aquilo era uma forma de manter a identidade das duas no seu dia a dia. A de Anahí era loira e a da amiga era ruiva.

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Depois de uma hora e meia de conversa e desabafos, Anahí já estava exausta demais para sequer conseguir disfarçar expressões agradáveis ao homem a sua frente. Mas decidiu permanecer com seu melhor sorriso e cara de interesse. Ouvir histórias de vida, experiências e dar conselhos, era uma parte aceitável daquele trabalho, principalmente quando na maioria desses casos os homens não pediam para transar com ela.
Só que o seu acompanhante não sabia organizar as ideias tão bem. Confundia assuntos e repetia os mesmo várias vezes. Ele devia ter seus mais de sessenta e cinco anos.
Anahí só aceitou o convite por já conhecê-lo e saber que seria apenas uma noite regada de histórias da juventude de alguém solitário.

Pensar nele a fez fazer uma breve autorreflexão.
Começara nesta vida aos dezesseis anos, e hoje com vinte e sete tudo era bem mais rotineiro. Era um emprego com suas vantagens, a começar pelos agrados que ganhava e que a mantinham sempre bem apresentável e luxuosa. Mas era só mais um emprego. Monótono e indispensável.

Depois da função cumprida, o cliente ordenou para que fosse deixada em sua casa por um dos seus motoristas. Mas como tática, ela sempre pedia que eles a deixassem próximo de um endereço onde o seu carro ficava estacionado. De lá ela saia em rumo da sua verdadeira casa. Aqueles homens não podiam saber o seu endereço verdadeiro ou seus dias provavelmente seriam desagradáveis. Como campainhas tocando no meio noite.

Eram exatas três da manhã, Anahí entrou devagar dentro do imóvel com todo o cuidado para não acordar Dulce. Ali não era tão pequeno quanto Lessa fez parecer, o apartamento era bem arrumado e tinha móveis de boa qualidade, e designer. A calefação funcionava divinamente, a cozinha era acoplada com a sala, divididas por um firme balcão de mármore e as paredes em tom neutro mantinham um ambiente calmo.
Às vezes era duro pensar que aquele era o único lugar de todos em que ela se sentia apenas Anahí, a garota do interior. Sem maquiagens, poucas roupas cheias de brilho ou homens cercando-a como gaviões.

Automaticamente ela andou até a varanda, apertou mais contra o corpo o casaco que usava, checando as luvas, e se firmou com os cotovelos na beirada. A neve da estação de inverno era encantadora. Quem não gostava dos flocos gelados? Era impossível não se deixar cativar, nem mesmo os corações gelados e duros como o dela resistiam. Era bom estar sozinha. As horas se passaram e a mulher nem se permitiu adormecer, seus olhos pareciam esgotados, porém, com uma insônia perturbadora.

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