26 de Novembro - A fita de borboletas

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Hoje pela manhã era possível escutar o barulho dos sinos da igreja, provavelmente porque hoje tem missa. O Stein e o Vincent continuaram sem falar um com o outro, eu não sei mais o que fazer, dá vontade de bater nos dois. Um fica para um lado e o outro fica para o outro. Parecem duas crianças  birrentas. Por mais que o motivo desse silêncio seja mais do que sério, eu não acho que deveriam estar tão distantes, até então o que vai adiantar ficar aprisionando os sentimentos? Tá falando o homem que enfiou várias peças de xadrez na boca e engoliu, mas isso é passado, o Toomas de agora está mais vivo que nunca.

O café da manhã demorou um pouco mas chegou. Nós comemos cupcake com cobertura de leite. Eu não pude esconder a felicidade; aqueles bolinhos me traziam memórias que com o tempo ficaram esquecidas na minha mente. A Estella era especialista em fazer esses bolinhos com cobertura de leite. O Adrus gostava tanto desses bolinhos que  na festa de aniversário dele o bolo foi com a massa do bolinho e com a mesma cobertura. Não reclamo, até então tudo estava uma delícia, a Estella tinha um dom, um dom indescritível para fazer esses bolinhos.

Quando era por volta do meio dia a Aura me chamou e me levou até uma das salas da enfermaria, lá dentro eu encontrei uma pessoa que eu não via há um bom tempo, eu vi ali a doutora Helena Rousseau. No consultório tinham alguns detalhes bem bonitos, diversos pássaros pintados na parede, uma prateleira de bonecos de super-heroi e no teto diversas estrelas de diferentes cores. Eu fiquei admirado com os detalhes e só parei quando a doutora Helena segurou na minha mão, olhou para os meus olhos e disse:

-Quanto tempo Toomas, como você está?

Eu então com um pequeno sorriso no rosto respondi:

-Ah, eu estou bem! Acredito que bem melhor do que das últimas vezes né?

Depois disso eu e a senhorita Helena demos uma pequena gargalhada. A doutora então pediu o meu diário e perguntou se eu gostaria de entregá-lo. Então eu olhei sorrindo para ela e disse:

-Eu sei que de início eu não curti muito a ideia de um diário, mas cada linha que eu escrevi valeu a pena, você permite que eu fique com ele?

A senhorita Helena não pode esconder a satisfação, seus olhos estavam brilhando como se tivesse alcançado o que queria. Ela então segurou em minhas mãos e disse:

-Ele é teu Toomas, fico feliz que tenha se descoberto a partir dele.

Depois disso ela me liberou e eu fui direto para a capelinha acompanhado por três militares. Chegando na capelinha eu vi a Aura, o boina vermelha e os meninos vestidos com aquelas roupas mais modestas, roupa essa que eu me esqueci de vestir, mas o importante é o fato de que eu estava ali para sentir Jesus novamente.

O boina verde não estava junto com o senhor Louis, até estranhei já que eles vivem grudados. O boina verde por mais que pareça marrento, é um doce, deve estar de férias, quem sabe esteja andando por Pamplona com aquela van peculiar.

A missa se iniciou e o padre Giovanni que celebrou. O coroinha também estava acompanhando ele, fico tão feliz vendo que um garoto tão jovem tenha entrado para esse serviço lindo. Ele deve ter entre dezesseis ou dezessete anos, é realmente bem novinho. A missa foi um pouco mais rápida do que da última vez, porém foi linda, as velas, a fumaça que o coroinha soltava com um objeto e o corpo de Cristo exposto, tudo estava lindo.

Quando o padre Giovanni saiu todos foram destinados para sua cela. Eu não queria ir né, mas sou obrigado, até então nós temos direitos mas não somos totalmente livres. O Stein e o Vincent continuaram com birra mas o que eu podia fazer? Apenas fiquei olhando o bico deles enquanto nós éramos guiados até a nossa cela.

Chegando na cela o Vincent se sentou na cama e disse:

-Stein, tem uma coisa que eu não te disse.

Na hora me faltou o ar e eu tentei pedir para o Vincent ter calma, mas ele estufou o peito e disse:

-Stein, o seu pai, eu matei ele. Calma, deixa eu explicar. Foi tudo tão rápido: Eu fui assaltar uma loja, eu precisava arrumar algumas coisas para o meu irmão mais novo e acabou que ele apareceu e sabe? Eu não tive outra reação. Desculpa Stein, PERDÃO! PERDÃO!.

O Stein então começou a gargalhar, mas ele gargalhava com tanta força que as veias do pescoço dele saltavam. O Stein então começou a ficar vermelho e as lágrimas corriam livremente pelo seu rosto. Eu não sei como, mas eu previ o que ele ia fazer então quando o Stein levantou eu pulei na frente do Vincent e levei um belo soco no rosto. O Stein então vendo o que tinha feito se virou de costas e começou a chorar. O Vincent também não conseguiu conter o choro e desabou. Eu não pensei em outra coisa a não ser acolher o Stein, então abracei ele e ficamos ali na cama, o Stein deitado no meu ombro e o Vincent caindo no choro enquanto olhava para parede. O Stein estava tremendo de tanta raiva, mas começou a se acalmar depois que eu acariciei levemente a cabeça dele, eu não sei explicar, eu nunca tive um irmão, pelo menos não um irmão vivo, então eu via essa figura no Stein e no Vincent. Eles são mais que amigos e já escrevi isso antes, mas se esse diário é para que eu possa transcrever as minhas emoções é isso que vou fazer, nem que eu repita a mesma coisa um milhão de vezes.

Hoje pela tarde, acredito que umas seis horas, eles trouxeram batata frita, sim, batata frita. Eu não sei o que passa naquela cabeça brilhante do boina vermelha, mas de duas uma: ou ele é um homem muito bom ou tem algum problema. O Stein não queria comer mas eu não me importei, enfiei uma batata na boca dele e ele engoliu a força. Sabe? O Stein não era muito de se abrir e era dono de uma timidez surreal, mas pela primeira vez em dias ele se sentiu completamente seguro perto de mim, não vou tirar a imagem de hoje da cabeça, o Stein deitou no meu colo abriu um sorriso e disse:

-Obrigado Toomas.

Depois virou para o lado pegou uma batata e lançou na cabeça do vincent e disse com um sorriso maroto:

-Tudo bem Vincent, também errei muito na vida e sabe, no fundo eu só queria perguntar algumas coisas para o meu pai, porém se o destino não permitiu que isso fosse possível deve ter algum motivo. O meu pai também não era lá um dos melhores pais e ele me largou muito cedo, porém sabe? Lá no fundo eu ainda gostava dele.

O Vincent então virou para o Stein e disse:

-Esse motivo talvez seja eu Stein, aquela fita não é tudo. Para falar a verdade seu pai sabia que talvez iria te encontrar e deixou uma coisinha. Acho que por isso ele me disse que eu deveria colecionar histórias para que um dia essas histórias chegassem aos parentes de alguém.

O Vincent então pegou o xadrez que estava naquele armário de vidro e abriu um fundo falso, e tirou lá de dentro uma fita cheia de desenhos de borboletas, depois entregou para o Stein e disse:

-Sei que não era da minha conta, mas naquele dia quando o tabuleiro caiu no chão ele quebrou um pouco a parte de baixo e quando eu tive acesso a ele eu percebi esse quebradinho e acabei achando essa fita mas nunca tive coragem de assisti-la, até então eu só tive acesso a minha câmera e ao tabuleiro meses depois que aconteceu toda aquela tragédia inclusive depois da morte do senhor de terno, a morte do teu pai.

O Stein não conseguia esconder o rancor e a emoção, mas fazia o possível para que eu o Vincent não percebesse, porém é difícil não perceber quando você ama alguém, é como se os sentimentos dela também fossem seus. O estranho de olhos azuis então pegou a fita e guardou no bolso do uniforme laranja. Assim como o Vincent, ele não queria ver aquela fita, pelo menos não agora.

Pela noite eu acabei dormindo na cama do Stein. Ele dormiu deitado no meu colo, com aqueles cabelos loiros caídos pelo meu uniforme. Eu fico perplexo com a rapidez que aqueles cabelos cresceram. O Stein chegou aqui com o cabelo bem aparado e agora já está no topo da orelha de novo. O Vincent também dormiu cedo, um dia eu tenho medo de acordar e ver esse garoto sem coluna, confesso que eu não entendo como ele aguenta dormir praticamente todo torto, parecendo um cabrito quando nasce.

Se eu pudesse descrever o dia de hoje eu diria que foi uma bomba de emoções, começou com uma consulta nostálgica, partiu para um encontro especial e terminou com um trio de amigos resolvidos e sem problemas, como eu estou amando tudo isso. Sei lá, com eles dois eu sinto que essa prisão não passa de um passatempo, espero um dia poder levar esses dois carneirinhos para uma cabana de férias ou para um acampamento com uma grande fogueira, um dia isso vai ocorrer, tem que ocorrer.

Diário de um injustiçado Where stories live. Discover now