72 Vitória

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Paloma, 
( sexta à noite)

Sob a incansável insistência da minha mãe, aceitei vir ao culto. Inteiramente contra a vontade do meu corpo, que deseja estar esticado em uma cama o tempo todo. As dores e enjoos dizimam meu ânimo; minha única vontade é ficar deitada. Mas minha mãe insistiu tanto que viéssemos, que achei melhor acompanhá-la ou ela não me deixaria em paz.

Estipulei uma condição: iriamos nos sentar no último banco, bem no fundo. Ainda estou me acostumando com a bandana, tenho um pouco de insegurança e prefiro evitar olhares e perguntas.

Os hinos tomam algum tempo do início do culto, antes da pregação. Um segundo louvor, que gosto muito, me impulsiona a ficar de pé. Assim como minha mãe. Oramos; uma mão no coração, a outra erguida. No caso da minha mãe, às duas erguidas.

"A minha vida é do mestre (meu coração)
Meu coração é do meu mestre
O meu caminho é do mestre
Minha esperança é meu mestre." 

Ao final dos louvores, o pastor toma a palavra, apresentando uma mulher morena - chamada Marlene -, na faixa de uns quarenta anos, que sobe ao altar. Eu já vim nessa igreja outras vezes com tia Lu, mas essa moça nunca pregou aqui.

O pastor explica que ela veio especialmente de outra igreja para ministrar a palavra do culto de hoje. Seus cabelos são compridos e negros, igual os meus um dia já foram. Após cumprimentar a amada igreja com a paz do Senhor, ela abre sua bíblia de capa escura, já adiantadamente marcada na página certa. Segura ela em uma mão e o microfone em outra. Diz bem brevemente: "Vou ler uma passagem, prestem atenção".

Ela lê justamente alguns versículos do livro de Jó, um homem fiel e temente a Deus, que perdeu tudo que possuía - incluindo filhos - e mesmo assim não deixou que nada disso abalasse sua fé.

Gosto muito do livro de Jó. 

Ela lê Jó 1:21 " Nu sai do ventre da minha mãe e nu partirei. O Senhor deu, o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor". Ao terminar, deixa sua bíblia sobre a mesa do altar, andando para lá e para cá, gesticulando e explicando qual a mensagem que ela deseja transmitir, e também, abrangendo toda a história de Jó.

Conforme ela fala, as palavras penetram em mim. Eu posso muito bem me comparar. Jó perdeu muito mais que eu e nem assim sua fé foi abalada. Marlene até segura sua bíblia nas mãos outra vez para ler o versículo 22, que diz: " Apesar de tudo, Jó não pecou com seus lábios, nem disse coisa alguma insensata contra Deus".

Retira os olhos da folha e os pousa na multidão da igreja, que a ouvem atentamente. 

— Quantas vezes nós reclamamos e blasfemamos contra aquilo que é de grande necessidade que passemos para a honra e glória de Deus? Não que ele precise de nós, não que ele queira nos usar e se aproveitar da nossa dor; mas ele extrai o bem daquilo que nos magoa, nos fere e nos entristece. Quantas vezes não entendemos o porquê disso ou daquilo naquele momento, mas lá na frente, quando Deus transforma, a gente pensa que talvez, se não tivesse sido daquela forma, o que foi extraído daquilo poderia não ser tão bom. Ele trabalha em meio ao caos para trazer alegria! Em meio a dor, para trazer a cura! Na escuridão, para fazer- se ver a luz! Ele age de maneiras surpreendentes e que talvez, se não fosse daquela forma, se não doesse em você, se não machucasse você, o resultado não seria tão maravilhoso no final. Amém?! — a igreja responde um amém entusiasmado.

Ela volta a falar, apontando sem rumo e ficando na ponta dos pés com a energia usada no emprego das palavras.

— E ele está agindo agora igreja! Ele está trabalhando para reverter toda a sua luta em bênçãos! Aleluia! — seus olhos passeiam pelos rostos, enfaticamente.

Love no Morro da Liberdade 1Onde as histórias ganham vida. Descobre agora