Um plano para nós (PAUSADO)

By MihBrandao

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Após ter sua família irrevogavelmente desestabilizada por um infeliz acontecimento que resultou na separação... More

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11 - Parte I
Capítulo 11 - Parte II
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Palavras de uma autora esgotada
Capítulo 37 part. I
Capítulo 37 part. II
Capítulo 37 part. III
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64 - Parte I
Capítulo 64 - Parte II
Capítulo 65
Capítulo 66 - Parte I
Capítulo 66 - Parte II
Capítulo 67
Capítulo 68 - Parte I
Capítulo 68 - Parte II
Capítulo 69
Capítulo 70
Capitulo 71

Capítulo 38

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By MihBrandao

Angeline narrando:

Dias atuais
Boston - Estados Unidos

O cricrilar dos grilos pareceu aumentar o volume sem o som da voz de Thomas. A noite estava fria, mas eu só sabia disso por causa da leve fumaça que subia ao ar com nossa respiração. A verdade é que eu não estava exatamente ciente da sensação térmica naquele momento. Aliás, eu não sabia se estava ciente de qualquer sensação.

Aquela era minha deixa para dizer algo, eu sei. Embora Thomas não estivesse olhando para mim quando se calou, eu tinha certeza de que ele esperava alguma reação minha. Mas o que eu poderia dizer? O que dizer quando seu chefe - o homem mais frio que já se conheceu - decide expor a você não apenas uma falha em sua armadura, mas toda sua alma?

Lágrimas haviam se secado em minha bochecha enquanto eu focava minha atenção na escuridão que se estendia além da estrada, e meus pensamentos estavam tão embaralhados que eu nem tinha certeza se conseguia pensar em alguma coisa. O nó em minha garganta estava apertado e sufocante, mas isso não era algo que eu podia controlar. Alice... então, afinal, tudo gira em torno dela. Tudo o que Thomas se tornou, tudo o que ele faz. Certo dia ele passou por uma experiência ruim, mas ao invés de aprender algo com ela, ele preferiu se afundar na amargura e deixar de viver.

Isso ele não precisou dizer, mas eu sabia. Não foi apenas sua fé que ele enterrou com Alice, foi também sua infância e todos os objetivos de sua vida. Deus, isso explica tanta coisa... explica tudo.

- O jeito como você me tratava quando me conheceu... - Me peguei dizendo devagar, sem me dar conta das palavras realmente. - Não era apenas pelo modo como falei com você, era? Isso sempre foi por eu ser quem sou. - Eu o olhei. - Você não suporta pessoas cristãs... por causa da Rute.

Thomas inspirou o ar lentamente, sem me olhar.

- Pra vocês, nunca é suficiente acreditar. Vocês têm essa necessidade de sair espalhando coisas sobre o Deus todo poderoso, sua bondade, seus milagres... vocês precisam pregar sobre Ele, isso está no sangue de vocês. Teimam em plantar esperanças onde não existe sequer uma chance. Estão tão cegos por... essa coisa... que não enxergam mais nada além dEle. Vocês trazem sorriso e fé, e de repente... não sobra nada. Nunca sobra nada. - Thomas finalmente se virou para me olhar, seus olhos distantes e perdidos em uma lembrança que ele se negava a deixa ir. - Como você acha que uma criança lida com isso?

Desviei minha atenção para o chão. Eu não conseguia encarar seus olhos. Não depois de tudo isso, era demais pra mim.

Deus, tudo isso é demais pra mim...

- E não adianta dizer que você é diferente, porque você sabe que não é. - Ele continuou. - Vocês são todos iguais, e o que vocês pregam... é o pior tipo de mentira que existe.

Eu podia sentir meu coração pulsando furiosamente em meu peito. Eu precisava dizer algo, ele não podia tirar as palavras de mim só por me mostrar seu ponto de vista. Se ele estava tentando colocar minha fé a prova, eu não iria reprovar.

- Teve uma coisa que Rute se esqueceu de dizer. - Falei em voz baixa, torcendo pra que eu estivesse indo pelo caminho certo. - A fé ajuda muito, é verdade. Mas Deus tem seus próprios planos, sua própria vontade. As vezes a gente não entende, mas Ele não trabalha esperando que a gente entenda... Ele só espera que a gente confie. E nem sempre a vontade de Deus é a mesma que a nossa, Sr. Strorck. Mas nós precisamos acreditar que a vontade dEle... é sempre melhor.

- Melhor? - Thomas soltou um risinho abafado. - Me explique como raios uma criança inocente e indefesa desfalecer lentamente até a morte pode ser considerado melhor, Angeline.

- Sempre existe um propósito maior que a gente não consegue enxergar.

- Um propósito. - Thomas repetiu, incrédulo.

- Sim, Senhor. Nada acontece sem a permissão dEle, e se Ele permitiu isso... é porque desde o começo existia um propósito além da sua compreensão.

Thomas olhou para a escuridão que se estendia além da estrada por um longo tempo. Tanto tempo, que por um momento me ocorreu a imaginação de que horas poderiam ser. Duas, três da manhã? Não tinha como saber, já que ambos os nossos celulares haviam ficado no carro. Existia a possibilidade de conferir no relógio caro em seu pulso, mas isso foi uma ideia que eu desisti de cogitar tão logo comecei.

- Sabe... - Ele enfim recomeçou. - Por algum tempo eu tentei encontrar alguém que eu pudesse culpar. Alexia... se ela tivesse percebido antes, talvez Alice ainda poderia estar viva. Stephan... se ele não estivesse tão cego de amores pela namorada, talvez pudesse notar a garotinha de três anos que precisava de ajuda. Minha mãe... como sua médica, ela devia ter se esforçado mais pra salvá-la. Meu pai... como um magnata tão rico e poderoso foi incapaz de encontrar um modo de curar uma doença idiota? Ou... eu. - Thomas engoliu, e sem me encarar, completou: - Talvez se eu fosse mais realista, eu poderia ter aproveitado mais o pouco tempo que tivemos juntos. Mas eu nunca aproveitei. A cada dia que se passava, eu acreditava que tínhamos mais tempo... mais tempo... mais tempo... mas nós nunca tivemos o "mais".

Mordi meu lábio inferior. Eu queria chorar de novo, mas me forcei a evitar as lágrimas quando Thomas me encarou.

- Você acha que a culpa foi minha?

- Não! - Balancei a cabeça enfaticamente. - Você não teve culpa de nada.

- Então, quem teve? - Ele me encarou por um momento e franziu a testa. - De quem foi a culpa, Angeline?

Tentei engolir, mas minha boca estava absolutamente seca. Thomas queria uma resposta, mas não importava o que eu pudesse dizer... ele já havia criado sua própria teoria, e isso não iria mudar. Não tão cedo.

- É... - Ele assentiu devagar. - Como imaginei.

E, sem esperar qualquer outra palavra, ele se afastou de mim e abriu a porta do carro, ocupando seu lugar novamente no banco do motorista.

Não o segui imediatamente. Eu ainda permaneci parada por um momento onde estava, tentando organizar meus pensamentos. Tentando não sentir falta da garotinha de olhos azuis. Tentado não ficar presa na imaginação de como Thomas Strorck poderia ser diferente se o final dessa história fosse outro. Tentando não pensar em qual seria o plano de Deus, afinal.

Então, por fim, quando percebi que essas questões não deixariam minha mente tão cedo, me desencostei do capô do carro e caminhei até a porta do passageiro.

Thomas não disse nada quando entrei - nem sequer me olhou -, apenas ligou o carro e deu partida.

Por todos os próximos minutos que se seguiram, ficamos em silêncio: ele focado na estrada e eu, em meus próprios pensamentos. Quando repassei tudo o que ele havia me contado em minha mente, não pude evitar: as lágrimas ressurgiram, e olhando pelo vidro da minha janela, eu não impedi que elas rolassem. Eu não sabia exatamente qual era o motivo de estar chorando, mas eu precisava disso. De alguma forma, precisava me livrar daquele sentimento esmagador de perder alguém que eu sequer conheci.

Thomas deve ter sentido ou ouvido meu choro silencioso, porque em certo momento, mesmo olhando pela janela eu o percebi me oferecer algo pelo meu olhar periférico. Olhei para sua mão, que tinha uma pequena toalha branca estendida para mim, e então para seu rosto, que mantinha uma expressão impenetrável, fria, com a atenção voltada pra estrada.

Mais lágrimas escorreram antes que eu pegasse a toalhinha. Como eu poderia te ajudar, Thomas...?

- Eu... - Gaguejei uma voz fraca. - Eu sinto muito. Por tudo.

- Eu já ouvi isso tantas vezes, que agora não significa mais nada pra mim. - Ele respondeu friamente, sem me olhar.

Apertei os lábios, olhando o contorno do seu rosto por um tempo maior. Eu queria tocá-lo e abraçá-lo, chorar com ele e ajudá-lo a curar suas feridas... mas eu sabia que não podia. E o sentimento que me dominava aquele momento era mais incômodo do que eu poderia explicar.

Deixei que a imagem de um garotinho triste de oito anos se tornando ateu preenchesse minha mente, permitindo minhas emoções se libertarem. Meus pensamentos e sentimentos começaram a se organizar lentamente, exigindo tempo, acalmando as batidas pesadas do meu coração. Eu podia sentir a toalhinha branca molhada quando sequei meu rosto uma última vez, e quando Thomas estacionou o carro na frente do jardim de sua casa, eu podia dizer que já conseguia exercer controle sobre mim mesma.

- Vá. - Ele pediu, ainda sem olhar pra mim, e isso me fez perceber que ele não havia mais me olhado desde que voltamos para o carro.

- Eu vou lavar sua toalha... - Resmunguei a examinando em meu colo. - Posso te entregar amanhã?

- Fique com ela. - Ele disse simplesmente.

Respirei fundo antes de assentir devagar.

- Certo. Obrigada.

Ele não respondeu, então abri a porta... e parei. Existia alguma coisa que eu precisava dizer, embora não tivesse certeza do quê. Ele precisava ouvir algo, e eu estava absolutamente ciente de que, se não eu, ninguém mais poderia dizer a ele.

Fechei a porta novamente, e pela primeira vez, percebi pelo meu olhar periférico ele se virar para me encarar.

Mordi meu lábio inferior e respirei profundamente. Por favor, Deus, não deixei que eu diga nada por mim mesma...

- Sabe, Sr. Strorck... - Comecei devagar. - Eu acredito que ninguém veio ao mundo em vão. Ninguém veio... por nada. Eu acredito... que todas as pessoas que já nasceram ou que ainda nascerão vêm ao mundo com um propósito, um... plano predeterminado por Deus. Nós... você, eu e todo o resto da humanidade... estamos aqui pra cumprir uma missão. Uma missão que precisa ser cumprida, e... precisa ser por nós.

Passei a língua entre meus lábios e olhei para minhas mãos que seguravam firmemente a toalhinha e minha pequena bolsa. Eu ainda podia sentir os olhos de Thomas em mim.

- Mas existem certas missões... que nós, como meros humanos mortais não conseguimos cumprir. São difíceis demais, e pra gente, pessoas tão falhas e erradas... às vezes é até impossível. Então, pra essas missões, Deus envia anjos. Anjos que nunca foram corrompidos, que não tiveram pecados. Não conhecem a raiva... o egoísmo... a luxúria. Para as missões mais difíceis... Deus envia seus anjos.

Pisquei algumas vezes tentando abafar as lágrimas que começavam a se formar em meus olhos. Tudo bem... tudo bem.

- E é normal que a gente pense que eles são nossos. É normal amá-los e achar, de forma egoísta, que eles devem ficar aqui por um tempo maior. Que eles devem crescer... amadurecer... conhecer o mundo e tudo o que ele oferece... - Balancei a cabeça para os lados. - Mas eles não podem ficar. Eles não nos pertencem, Thomas. O único objetivo de estarem aqui, é que precisam realizar algo que nós não conseguimos. Alguns levam mais tempo que outros, mas nunca... levam tanto tempo quanto queríamos. E então, quando terminam... - Olhei para Thomas e vi as lágrimas se formando na base de seus olhos. - ... eles precisam voltar.

Ele não disse nada. Eu podia ver o quanto sua mandíbula estava contraída, o quanto ele se esforçava para manter sua expressão neutra. Mas eu sabia que, se ele piscasse, ele choraria.

- Alice veio ao mundo... e cumpriu a missão dela cedo demais. Mas Deus nunca a abandonou. - Balancei a cabeça, e ao mesmo tempo em que uma lágrima solitária escorreu pela bochecha de Thomas, eu também chorei. - Deus nunca a abandonou. - Repeti, surpresa com o modo como de repente eu mal conseguia falar. - Ele apenas a levou de volta pra casa.

Thomas desviou os olhos e secou as lágrimas com a mão. Ele levou longos segundos para responder, e eu sabia que era porque estava controlando suas emoções.

- Você não sabe de nada. - Ele disse uma voz quebrada, tentando soar frio mas falhando totalmente. - Você não sabe o quanto ela sofreu. A dor que ela sentiu, os gritos, o choro... você não sabe de nada. - Ele balançou a cabeça antes de me olhar novamente. - Isso era Deus a levando de volta pra casa? Essa é a merda da maneira que Deus trata um anjo? - Ele soltou um riso de um segundo antes de começar a me responder com a voz baixa, aumentando-a gradativamente: - Eu vou te dizer o que isso é pra mim. Pra mim... isso é o seu Deus castigando uma criança indefesa de três anos por pecados que ela nunca teve a chance de cometer!

Fechei os olhos, esperando que ele se acalmasse, sentindo o peso esmagador de suas palavras sobre mim. E então, poucos segundos depois, quando ele não disse mais nada, abri os olhos e perguntei com cuidado, sentindo as lágrimas comprometer minha voz:

- Alguma vez ela reclamou?

Thomas franziu a testa, incrédulo.

- O quê...?

- Alguma vez ela reclamou... do que estava passando? Ela se lamentou pela situação em que estava?

Ele balançou a cabeça, como se não acreditasse no que estava me ouvindo perguntar.

- Ela nunca precisou reclamar pra gente saber o quanto estava sofrendo. - Respondeu entre dentes, controlando suas próprias emoções. - Ela nunca precisou... reclamar.

Balancei a cabeça e olhei para minhas mãos, apertando os lábios para conseguir prosseguir.

- O senhor tem razão. - Falei devagar. - Ela era indefesa. Crianças como ela são as coisas mais puras... delicadas e sensíveis que existem na Terra. Mas ainda assim, são as únicas fortes o suficiente pra passar por tudo o que ela passou... e continuar sorrindo. Fortes o suficiente para nos mostrar que não importa o quanto uma situação seja difícil... ainda existe um motivo para ser feliz.

Olhei para Thomas, as lágrimas escorrendo em meu rosto e se acumulando em seus olhos. Eu não sabia qual seria o efeito que minha palavras poderiam causar nele, mas eu precisava dizer. E com sorte, o efeito seria positivo.

- Alice não estava sendo castigada, Thomas... ela estava apenas ensinando às pessoas o que era viver. E quer saber de uma coisa? - Eu fiz uma breve pausa, mesmo sabendo que ele não responderia. - Ainda não é tarde demais pra aprender.

Esperei que ele dissesse algo mais, mas ele não disse. Apenas continuou me encarando, se recusando a piscar, se recusando a chorar. Então, quando vi que não existia mais nada a ser dito, abri a porta do carro e desci.

Livre para o ar da madrugada, fechei os olhos e respirei fundo antes de caminhar para o casebre, e quando estava a poucos passos de chegar até a porta, ouvi o carro de Thomas dar partida. Imaginei que ele estivesse se dirigindo ao estacionamento, mas ele não o fez. Ele saiu outra vez.

Fiz uma oração breve pra que Deus cuidasse dele, independentemente do lugar para onde ele estivesse indo. Então entrei em casa.

- Angie! - Minha mãe veio me receber. - Eu estava esperando que você fosse chegar mais cedo.

Deixei minha bolsa e minha nova toalhinha molhada sobre o sofá.

- Não precisava me esperar acordada, mãe.

- Diga a uma formiga para ficar longe do açúcar e veja se ela obedece. - Ela se aproximou de mim e segurou meu rosto entre as mãos. - Você andou chorando. O que aconteceu?

Fechei os olhos e balancei a cabeça.

- Onde ele te levou? - Ela insistiu, preocupada.

- Eu prometi que não contaria isso a ninguém, me desculpe.

- Ele... - Ela franziu a testa, quase desesperada. - Filha, ele fez alguma coisa com você?

- Não, mãe, meu Deus. Eu estou bem.

- Você estava chorando.

- Eu estou bem. - Repeti amarrando meu cabelo em um coque, para tomar um banho. - Não se preocupe comigo. A senhora devia ir dormir, já são quase três da manhã.

Me aproximei dela e beijei sua testa antes de me encaminhar para o pequeno banheiro, mas antes de chegar até lá, parei e me virei novamente.

- Sabe, mãe, tinha razão. Ele tem toda essa máscara de arrogante e insensível, mas no fundo... Thomas é um homem bom.

***

Eu não consegui dormir.

Talvez eu tivesse um êxito melhor se tomasse algum calmante ao algo assim, mas não havia nenhum calmante no casebre. Então fiquei acordada, olhando para o teto, até que seis e quinze da manhã ouvi o som do carro de Thomas do lado de fora. Corri até a janela e espiei pela fresta. Ele saiu do carro, jogou a chave para Henry que o olhou surpreso - provavelmente esperando que ele aparecesse do interior da casa, não de fora dela - e se apressou para dentro.

Minutos depois, ele voltou totalmente diferente de como havia entrado. Trocou a jaqueta de couro e a calça jeans amassada pelo terno social, arrumou o cabelo desgrenhado e pegou a maleta. Agora, ele era novamente o Thomas Strorck com quem eu estava acostumada. Sem sinais de cansaço ou de quem não havia tido uma boa noite de sono.

Voltei para o sofá, e foi apenas quando o sono começou a se esgueirar sobre mim na hora em que eu devia estar acordando, que me dei conta do motivo de eu não ter conseguido dormir antes. Eu estava apenas preocupada com Thomas.

***

- Angie... - Vagamente ouvi minha mãe chamar. - Está na hora de acordar, meu bem. São sete e meia.

Ah, não. Eu acabei de fechar os olhos...

- Só mais cinco minutos, mãe. - Implorei.

- Acho melhor você não se atrasar. Os novos empregados começam hoje.

- Uhum... - Resmunguei. Não sei se minha mãe respondeu, porque no segundo seguinte eu mergulhei no sono outra vez.

Acordei três horas depois com o sol entrando pela janela e me levantei num pulo. Pelas minhas contas, eu estava absurdamente atrasada.

Troquei minha roupa, amarrei meu cabelo, enfiei meus pés em um chinelo e corri pra fora.

- Ah, meu Deus! - Resmunguei ao atropelar alguém perto do jardim, por pouco não o derrubando.

Um rapaz com cerca de três anos a mais que eu segurou meus braços para impedir minha queda ao mesmo tempo que soltava uma exclamação de surpresa.

- Você está bem? - Ele perguntou me olhando nos olhos.

Eu pisquei. Ele devia ser de dez a quinze centímetros mais alto que eu e tinha uma expressão confiante, mas eu não me lembrava de já tê-lo visto antes.

- Desculpe... - Resmunguei me afastando do seu toque. - Quem é você?

- Matthew. - Ele sorriu. - Pode me chamar de Matt. Eu sou o novo jardineiro, e você é...?

- Angie. - Balancei a cabeça antes de me corrigir: - Angeline. Sou a cozinheira.

- A cozinheira. - Ele ergueu as sobrancelhas. - Ouvi dizer que seu cargo foi o único para o qual Thomas não contratou um segundo funcionário. Ele deve gostar de você.

Balancei a cabeça afirmativamente.

- Ele é bem exigente. Mas se me der licença, estou atrasada agora.

- Claro. - Ele recuou um passo, deixando meu caminho livre. - Te vejo por aí, Angie.

- Angeline. - Corrigi passando por ele. - E não chame nosso patrão pelo primeiro nome. Você não vai querer ser demitido logo no seu primeiro dia.

E, sem esperar uma resposta ou qualquer outra reação, corri pra cozinha.

Enquanto preparava apressadamente a comida, não consegui evitar que meus pensamentos viajessem até Thomas. Não conseguia evitar pensar qual foi o efeito que minhas palavras haviam causado nele. Ele saiu àquela hora, pra sabe-se lá Deus onde, e só voltou quando amanheceu. Ele não dormiu. Devia ter tirado aquelas poucas horas para pensar, mas... e agora? Como ele estaria neste exato momento?

Terminei de preparar o almoço poucos minutos antes de ele chegar, e quando chegou, mesmo que meu instinto fosse ir até ele e perguntar se ele estava bem, eu não o fiz. George havia ocupado seu lugar de costume no canto da copa enquanto ele comia, e por mais que eu tentasse, não conseguia encontrar um jeito de chegar até ele sem que o clima ficasse absurdamente esquisito.

Thomas voltou pra empresa sem que eu ouvisse sua voz sequer uma vez, e quando terminei de arrumar a cozinha, dei uma volta pela casa para conhecer os empregados recém-contratados. Haviam duas novas faxineiras que pareciam simpáticas e já haviam feito amizade com minha mãe, um limpador de piscina de meia idade, uma lavadeira que era responsável apenas pelas roupas e o jardineiro que parecia já ter criado intimidade com todo mundo nas primeiras horas de trabalho. Agora a casa parecia mais um sindicato para trabalhadores, com tantos funcionários.

- Já sabe o que vai fazer em seu horário vago? - George perguntou ao me encontrar no corredor. - Vai ter tempo de sobra agora.

- Vou me concentrar em estudar. - Respondi prontamente. - E você?

- Eu acho que não vou ter tanto tempo livre. - Ele sorriu. - Preciso supervisionar os empregados. Mais empregados, mais trabalho.

- Oh...

- Mas tudo bem. Fico feliz que agora vocês estejam mais aliviados. - Ele estreitou os olhos pra mim de forma conspiratória. - Parece que uma certa garota está conseguindo amansar a fera.

Eu ri.

- Ele não é uma fera, George.

- É, eu acho que não mais. - George deu de ombros, brincalhão, antes de baixar o tom de voz. - Mas se me permite dizer uma coisa... seria um prazer pra mim te ter como patroa.

Ele piscou um olho, e sem esperar resposta, se virou e fez seu caminho para longe de mim.

***

Respirei profundamente antes de bater à porta do escritório de Thomas várias horas depois, quando a maioria dos empregados já haviam se recolhido. Eu podia ouvir murmurios lá dentro, e silenciosamente, pedi para que ele não estivesse estressado.

Abri a porta devagar quando ele não respondeu à minha batida.

- Isso já não é problema seu. - O ouvi dizer antes que ele desligasse o telefone e olhasse pra mim.

Fazia pouco mais de um mês que eu trabalhava pra ele, e embora parecesse pouco tempo, eu já conseguia identificar pelo brilho dos seus olhos o momento em que ele estava zangado. E naquele momento, ele estava extremamente zangado.

- Eu não queria atrapalhar, senhor, eu só... - Engoli. - Queria conversar sobre ontem.

Ele esperou, seus olhos levemente estreitos.

- Queria te pedir desculpas por ter te forçado a me contar sobre a... Alice. E me desculpe se eu disse alguma coisa que o senhor não queria ouvir, ou... se eu fui invasiva, ou... - Suspirei. - Bem, eu não sei. Me desculpe se eu te causei desconforto ontem, com certeza não foi minha intenção.

Posso estar enganada, mas poderia jurar ter visto sua expressão se aliviar minimamente.

- Não tem problema.

- Então... está tudo bem?

- Tudo bem, Angeline. - Ele assentiu e fez uma pequena pausa antes de emendar: - Eu só gostaria que alguém tivesse me explicado daquele jeito quando eu tinha oito anos. Teria sido mais fácil passar por isso e talvez... talvez eu tivesse acreditado.

Eu pisquei, sem saber ao certo como lidar com essas palavras.

- Então está tudo bem. - Thomas completou.

Apertei os lábios, desviei os olhos e balancei a cabeça.

- Certo. Então... - Respirei fundo. - Tenha uma boa noite, senhor.

- Angeline. - Thomas chamou quando me encaminhei para porta, então me voltei pra ele. - Se você não tivesse me forçado a falar sobre a Alice, eu jamais falaria. Morreria com essa história me sufocando e você jamais saberia. Ninguém jamais saberia. - Ele olhou meus olhos por um tempo e alfinetou: - Então, obrigado.

Senti meu coração aquecer. Era a primeira vez que ele me agradecia por algo, e isso era a melhor recompensa que eu poderia receber.

- De nada. - Respondi incapaz de desviar os olhos dele.

Sim... Thomas é um homem bom.

- Boa noite. - Ele resmungou, e eu sabia que estava sendo dispensada.

- Boa noite. - Murmurei enquanto ele digitava um número e levava o telefone ao ouvido.

Caminhei até a porta devagar, mas congelei assim que coloquei a mão na maçaneta.

- Eu quero que você me dê um motivo, um único fodido motivo, pra não chutar sua bunda agora mesmo.

Me virei novamente para encontrar Thomas com o telefone no ouvido, olhando pela janela com os olhos perdidos em algum lugar do ambiente lá fora.

- Que se dane o que você achou, merda! Eu não te contratei pra trabalhar com suposições, o seu dever é ter certeza de que o faz está certo!

Não... não, não, não. Eu me recuso a aceitar o antigo Thomas de volta.

- São oitenta e quatro milhões! Acha que encontro oitenta e quatro milhões em um cesto de lixo?! Como acha que pode recuperar isso, porra?!

Caminhei até ele, tentando ignorar a vozinha no fundo da minha mente que insistia em dizer que eu devia ficar longe disso.

- Eu não dou a mínima pra sua esposa! Eu quero que...

Ele não teve a chance de terminar de falar, porque antes que o fizesse, tirei o telefone de sua mão e o desliguei.

- Que merda você pensa que está fazendo? - Ele focou em mim sua raiva, o que me fez imaginar, por um momento, que eu devia ter simplesmente saído do escritório quando tive a chance.

- Eu... - Travei. Vamos lá, Angie. Controle a situação. - O senhor não é assim. - Consegui dizer devagar, tentando não me intimidar pelo olhar que ele me lançava. - O homem que conheci ontem, que brincou, sorriu e contou histórias... o homem que se importa com todas aquelas crianças doentes, ele... - Engoli. - Ele não é assim.

Eu podia ver a fúria saltando dos olhos de Thomas. Pressionei com firmeza seu celular em minha mão e respirei fundo.

- É uma das regras mais simples da vida, Sr. Strorck. Não tome decisões quando está com raiva. Então... bem, talvez precise de um tempo para... se distrair. Se acalmar. Depois tudo vai estar... - Deus, faça-o parar de me olhar assim! - ... melhor.

Ele respirou pesadamente algumas vezes como um touro enfurecido, e quando eu estava começando a cogitar a ideia de largar seu celular e sair correndo porta afora, ele fechou os olhos, buscou o oxigênio no fundo de seus pulmões e me encarou novamente.

- O que exatamente você está sugerindo, Angeline?

Pensei um segundo antes de responder, torcendo para que, quando eu colocasse meu pensamento em palavras, ele não soasse tão absurdo quanto havia soado na minha mente.

- Dê uma volta comigo. Só por... alguns minutos.

Ele estreitou os olhos.

- Você tem alguma ideia de quanto custa alguns minutos do meu tempo?

- Com certeza não é nada comparado ao que o senhor já tem.

Tudo bem... eu sou capaz de distraí-lo. Eu posso fazer isso.

Thomas não respondeu, e quando o sétimo ou oitavo segundo se passou, percebi que talvez dessa vez eu tivesse ido longe demais. Eu realmente devia ter ficado fora de seus assuntos de negócios, mas... Deus, eu só queria o Thomas de ontem de volta! Isso é pedir muito?

- Não precisa vir, se não quiser. - Falei com cuidado. - Mas eu vou. Então... o senhor pode ficar aqui, retornar essa ligação e liberar sua raiva da maneira que sabe, ou... - Coloquei o celular sobre sua mesa e encolhi os ombros. - Pode vir comigo e aprender uma maneira diferente. A escolha é sua.

Virei as costas e saí, fechando a porta atrás de mim ao passar. Parei do lado de fora e esperei por um tempo... mas Thomas não apareceu.

Respirei fundo.

O que você acabou de fazer, Angeline?

Balancei a cabeça para os lados e fiz meu caminho para fora.

- Angie. - Minha mãe me encontrou antes de eu descer a escada. - Achei que você já estivesse em casa.

- Eu acho que vou sair, mãe.

- Agora? - Ela franziu a testa.

- É, eu... preciso de um tempo. De ar fresco.

- Mas você vai sozinha?

- Não. - A voz grave soou atrás de mim, chamando imediatamente minha atenção.

Thomas caminhou até a gente com passos confiantes e um tanto tranquilos, vestindo apenas a camisa branca e a calça social que, horas antes, eram parte do terno que estava usando. Ele parecia tão... Thomas.

- Ela vai comigo. - Ele disse ao chegar do meu lado. - Posso sair com sua filha outra vez, Sarah?

#-#

Aaaaaaah que delícia postar um capítulo!!! 😍

Gente, pra constar, eu não estou oficialmente de volta. Mas eu estava com tanta saudade, mas tanta saudade, que não consegui esperar mais três semanas pra postar. Então aí está esse capítulo fresquinho pra vcs, mas é mais um lembrete da história pra que vcs não se esqueçam dela kkk

O próximo capítulo eu realmente não sei quando será postado. Se a saudade apertar absurdamente de novo, eu volto. Se não, vou respeitar o tempo e terminar o que eu preciso fazer antes de estar aqui outra vez. Espero que a paciência de vocês não se esgote.

Aliás, muito obrigada pela paciência. Meu Deus, vocês têm tem alguma ideia do quanto eu amo vocês? Vocês tem?

Obrigada por tudo, meus amores. Acredito que verei vocês em breve, porque a saudade realmente fala mais alto que todos as coisa que eu tenho que fazer.

Então até mais. Beijos da escritora que ama vocês tanto quanto ama escrever ❤

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